por Álvaro André Zeini Cruz

Vi Retratos Fantasmas no quarto, com Nina e Margot.
Esse filme de apartamento (visto num apartamento) (re)abriu-me uma casa inacabada. Isso porque me remeteu ao material bruto que gravei na casa dos meus avós, e que nunca avançou para além de um rascunho de montagem, pois sequer chegara perto de uma forma que me parecesse acabada. Talvez porque as casas-imagens/imaginadas sejam formas fluidas, vacilantes, uma vez que passam por constantes reformas nas memórias. Talvez porque tenhamos problemas com fantasmas. Todos.
Curiosamente, o título provisório desse não-filme era (é?) A Casa é o mundo e os nossos fantasmas. Tentei pôr minha voz como cola dessas imagens, mas a voz não soava minha (provavelmente porque era excessivamente minha). Em Retratos fantasmas, Kleber Mendonça Filho assume sua voz de autor/narrador como rejunte movediço, que anexa sua casa cinematográfica (permanência, apesar dos cupins, da especulação, das igrejas) aos cinemas de rua (impermanência, entre cupins, especulações e igrejas). Nina já cochilava, mas Margot investiu, entre latidos, contra o fantasma de Nico, o cachorro morto, vizinho de Mendonça Filho no Recife, mas que, em Bauru, a respondia (ou a provocava) na TV. Ela, no entanto, não se importou com o desfile do gato entre a serpentina cortante do muro, plano que Mendonça Filho havia exibido em uma palestra que assisti em Cambridge.
Pois fantasmagórica é também a memória; algumas das imagens de Retratos Fantasmas me provocaram déjà vu porque haviam sido mostradas nesse evento, mas só o gato na serpentina (ignorado por Margot) ganhou contornos completos em minha tela interna; a verdade é que, desse evento, lembro-me do dia chuvoso, de um comparativo feito entre os planos dos prédios recifenses e a decupagem de Ozu (não me lembro dos planos propriamente ditos), e de que conversei brevemente com Mendonça Filho, depois de baixado frisson em torno dele e de ouvir de minha supervisora acadêmica que não sei fazer networking (opinião que ela deu com carinho e com toda razão).
Entre os roncos de Nina e a curiosidade de Margot, esse puxadinho entre casa e cinemas, de Kleber Mendonça Filho, agitou meus espectros cinematográficos e uma inquietação: é interessante como os fantasmas se formam em contornos e lampejos, mas com poucos detalhes. Nessa época em que ouvi o diretor, eu fazia parte de minha pesquisa em Leeds e frequentava semanalmente o Hyde Park Picture House, um dos cinemas de rua mais antigos da Inglaterra. Esse cinema me causou tanta impressão, que escrevi um conto[1] nele ambientado, supondo a visita do protagonista de O Apanhador do Campo de Centeio (que detestava cinemas) ao Hyde Park. Foi quando notei esse esquecimento dos detalhes; na escrita desse conto, tive que recorrer às fotografias para consolidar a memória, reduzida às sensações acerca da luz, do ar, do cheiro de fudge, café e pipoca. Ou seja, tive que recorrer aos meus arquivos para entalhar esse outro arquivamento fugidio, esse lençol flutuante que me lampejava um cinema.
Outros cinemas retornaram dessa volta dos que não foram: o bolor amadeirado do Cine Luz, o combo de pãezinhos de queijo o UCI Estação, o cinema auditório austero que tínhamos na finada CineTV, a vitrine em luzes quentes que dava para a praça de alimentação do Bauru Shopping, o pé direito alto e o forro adornado do Cine Bauru, o cinema/teatro de Itápolis, com pôsteres colados em durex sem nenhum glamour, e que tinha como tela uma parede, diante da qual eu me sentava, anualmente, para “recitar” minha pura teimosia e falta de talento no piano.
Feito desses arquivos, decalques de uma materialidade desenformada ou transformada, o filme de Kleber Mendonça Filho transita entre as memórias de um humano e uma memória humana. Dessa interrelação invisível, emergem aqui outras memórias, pois na cinética nossa entre circular e habitar, existem os fantasmas que nos circundam, que nos circulam, que nos habitam. Retratos Fantasmas se declara aos filmes, mas, principalmente, às arquiteturas, às marquises e aos inúmeros contrastes possíveis entre os mundos de fora e os mundos de dentro. Retratos Fantasmas trouxe à tona uma assombração que tento escantear, ignorar, mas que, vez ou outra, me prega um jump scare: será que eu ainda amo o cinema?
Será que eu ainda amo o cinema ou amo a lembrança de amar o cinema, em momentos como aquele em que registrava os filmes em letra de forma, num caderno Tilibra? Será que ainda amo o cinema ou amo o compromisso que assumi quando optei por estudá-lo, por fazê-lo? Será que amo o cinema ou amo o fato de que ele me tem sido ponte para exercer a escrita, essa, talvez, um verdadeiro amor? Será que amo o cinema ou amo os movimentos que esse amor propicia, entre distanciamentos e (re)encantos? Séra que amo o cinema ou o temo?
Buh! Dilemas fantasmas, aqui postos sob a sincronicidade de, há pouco, ter ouvido, na voz de Silvio Almeida — “a encruzilhada é a dialética da vida”. Fantasmas insolúveis. Os retratos de Mendonça não terminam em lugares com alicerce, estacados ao chão, mas a bordo de um Uber, com as luzes — fantasmas da cidade — rebatendo nos tecidos vivos e mortos, intrusas como vaga-lumes desfocados pelas janelas/telas em movimento. Trouxe-me um fantasma de 2007, quando eu trabalhava no Festival do Paraná de Cinema Brasileiro Latino. Pediram-me que eu acompanhasse um figurão em um tour por Curitiba. O tal figurão era Adriano Aprà, crítico, professor e historiador (do cinema) italiano. Nessa tarde que compartilhamos a bordo do carro, Aprà foi afável e bem-humorado, muito embora eu pouco visse de seu rosto — estava quase sempre colado à janela, olhando para o alto. A dada altura, perguntei o que ele achara da cidade. Ele, então, desgrudou da janela e, revelando um rosto entre o fascínio e a curiosidade, respondeu (e, na incapacidade de citá-lo diretamente, parafraseio): cada prédio tem uma cor, uma arquitetura. É bem diferente da Itália.
Kleber Mendonça Filho termina seus Retratos convergindo com o valor que guardo desse episódio (fantasmagórico, porque pouco me lembro além disso) com Aprà: cinema não se cria, se descobre; dentro, fora, pelas janelas do carro. São Fantasmas porque são assombrações memoriais que sobressaltam o que move e comove a matéria-prima cinematográfica. O olhar, a vontade de ver e guardar o agora (que, inescapavelmente, deixa de ser agora).
Meu, de Margot, mas não o de Nina, que dormiu o filme todo, mesmo com os latidos fantasmagóricos de Nico.
[1] O Conto O Apanhador do balcão do Hyde Park foi publicado pela revista Torquato e pode ser lido aqui: