por Álvaro André Zeini Cruz

Numa vazante véspera de Natal, as horas de um reencontro escorrem. Porque essa é a natureza das horas – escorrer e escorregar – e daquilo que elas preenchem – a vida. Duplamente escorregadias são as ações envolvidas nessa reunião entre Luzimar (Irandhir Santos) e Gildo (Julio Andrade): primeiro porque derramam-se os ressentimentos a conta-gotas, até que se atinja o pingo transbordante, que inunda as superfícies poeirentas e faz com que esses homens aquaplanem até escoarem pela encenação em profundidade (que nem sempre tem profundidade de campo).
Esse movimento, porém, é centrípeto, pois antes desse fluxo conduzir as ações às profundezas do plano, ele as espalha pelas laterais do quadro. Os espaços que preenchem os planos são intrincados a partir de uma arquitetura que privilegia as composições em molduras. Esse recurso – cujo uso vai de Hitchcock a Ozu – direciona o olhar, mas, neste caso, lembra que a correnteza que arrasta essas vidas esbarra na solidez dessas casas-canos. As aberturas que dão aos corpos remetem a uma imagem com vazamentos.
“Redemoinho” poderia ser um representante do que os Cahiers du Cinéma chamaram de “cinema de fluxo”. Mas a câmera parece ter outra consciência; está menos interessada no boiar dessas vidas do que no esbarrão pontual entre esses homens com traumas encanados. É um filme de psicologia dos personagens e, por isso, o olhar não se contenta a ver; quer analisar o outro. Esse posicionamento ratifica o mundo posado como objeto que se desdobra adiante, o que denuncia que esse olhar-narrador não se deixa envolver (e engolir) pela correnteza. A câmera não molha o tripé no redemoinho; pelo contrário, procura um lugar seguro para observar esse fluxo intranquilo e cheio de obstáculos no percurso. Não por menos, é uma câmera que se agarra a pilares, grades, batentes, mas que, sobretudo, é obcecada por parapeitos.
O parapeito da ponte – espaço de uma tragédia que sobrevive como trauma – é a barreira primordial, que será replicada por estruturas em primeiro plano, como painéis e tetos de carros. Nenhuma, no entanto, é tão contundente como o trilho do trem que divide o espaço de quem olha daquele que é olhado. A cena do reencontro entre Luzimar e Gildo mutila os corpos de Santos, Andrade e Cassia Kis. Também os bens desses personagens: a bicicleta de Luzimar, o carro de Gildo, a casa de Marta (Kis). A ferrovia retalha e esmaga esses bens masculinos – os transportes, o movimento, a fuga – e o bem feminino – a casa, a permanência, a História. Em “Uma História social da mídia”, Asa Briggs e Peter Burke lembram do tempo em que o trem (e a ferrovia) era de uma só vez meio de transporte e meio de comunicação. No Brasil, o trem começou um caminho de obsolescência a partir do governo JK, mas o espaço aqui em nada se enquadra ao slogan “50 anos em 5” (a cidade, aliás, é a Cataguases de Humberto Mauro, para quem cinema era cachoeira). Numa ironia dramática, essa é a cena que abre afluentes de incomunicabilidades: familiares, históricas, geográficas, de gênero, de classe. Os ressentimentos desses homens de sentimentos e palavras afogadas resultarão numa outra tragédia, também abafada pelo barulho e pela imagem do trem que passa.
Diretor vindo da televisão, José Luiz Villamarim é indiscutivelmente um cineasta da imagem, cujo formalismo da mise-en-scène é amaneirado pela fotografia de Walter Carvalho. Isso cria uma contradição interna, um filme que se desdobra em labirintos ao passo que solta seus corpos para que achem uma saída. Um filme que ao tentar encanar o fluxo incontrolável d’água, produz um emaranhado de canos, que continuarão desembocando num só ralo. Entre rodopios, “Redemoinho” passa por um rigor formal a la Michael Haneke (mas sem o sadismo para com os personagens; também sem o oposto, uma devoção publicitária). Flerta com uma languidez a la Lucrécia Martel, mas não se fixa nisso; desprende-se e continua a girar. Para o bem e para o mal, cria-se, da narrativa ao estilo, um encontro de existências que se debatem enquanto serpenteiam entre as texturas enferrujadas do dia e as cores néon da noite.
Um redemoinho pode ser feito de vento e areia, o que seria condizente com a paisagem árida. Mas a água brota da trama como um geiser: a chuva, o rio, o acidente na história pregressa que desencadeia o plot (e que o roteiro nem precisaria revelar, já que a existência de um trauma comum já bastaria). Numa crítica que contrasta “Imensidão Azul” e “Palombella Rossa”, Serge Daney faz uma comparação entre o que, segundo ele, seria um filme da superfície e um filme das profundezas. Em “Redemoinho”, o caminho entre esses dois pontos se espirala na rotina seca que abriga a faísca desse reencontro. Do subtexto, uma convergência se insinua.
Gildo diz que só não existe solução para duas coisas na vida – morte e queda de cabelo. E, embora haja outras causas, a calvície é naturalmente associada ao envelhecimento, à idade, ao tempo. Gildo, sem perceber, fala do destino final, aquele que nos é inescapável. É nesse trânsito, nem tanto à margem, nem tanto ao fundo, que esses corpos masculinos, paradoxalmente secos por fora e afogados por dentro, se digladiam e se contorcem. Homens aparentemente cordiais (no duplo sentido do termo) que vão se encharcando entre ressentimentos construídos beat a beat, num jogo cênico de palavras e silêncios entre um Irandhir Santos mais circunspecto e um Júlio Andrade explosivo.
O abraço, que parece guardar um mundo submerso, se dá na ponte, com o parapeito atrás. Teria acontecido porque há ali essa barra de segurança (que de nada serviu no passado)? Ou porque a escuridão cerca e o rio corre logo abaixo? Ou simplesmente porque aquele é o lugar disparador de uma das dores que os une (mas que dispara outras)? De qualquer forma, é sobre essa correnteza escondida que eles extravasam coisas engolidas entre afogamentos e vindas à tona, num fluxo que corre confinado em quadros/formas que vão se tornando cada vez mais asfixiantes. É um respiro, uma lufada de ar tomada por esses homens à deriva no caldo dos dias; um que produz tecidos para mais de vinte países, outro que quer levar as filhas à Disney. Ambos centros descompensados, que se chocam e sangram entre o que se revela um complexo de redemoinhos. Dois sobressaem: o que gira em torno dos próprios umbigos, e o outro, o do desaguar inevitável. O nó invisível que une essas linhas numa trama só.
Em cartaz no MUBI.