por Álvaro André Zeini Cruz

Rayssa Leal comoveu o Brasil com sua medalha de prata no skate, um esporte bastante marginalizado que estreou nas Olimpíadas de 2021. Comoveu, do latim commovĕre, “mover conjuntamente”, o que por si só parece improvável num país com manobras tão descompassadas. Eu não saí imune e tinha lá meus dois tostões sobre de onde vinha essa emoção. Mas, naqueles dias, muito se falava sobre Rayssa e, quando muito se fala, às vezes é estratégico retirar as próprias palavras até que elas maturem e saiam num momento oportuno. Saem agora, por dois motivos.
Há alguns dias, estive relendo trechos referentes ao conceito cinematográfico de fotogenia. É uma ideia conhecida, mas recorrentemente reduzida ao close-up belo, bem fotografado. Para o teórico Jean Epstein, a fotogenia ia além do rosto e do quadro; envolvia um lampejo de gesto, uma ação mínima que só o cinema seria capaz de reproduzir e destacar. Nas palavras de Epstein
“ela [a fotogenia] é uma faísca e uma exceção que se dá como um abalo.”
Jean Epstein. Bonjour Cinéma – Excertos.
Ainda que as imagens fossem esportivas, televisionadas e ao vivo, a releitura de Epstein fez com que as cenas de Rayssa retornassem a mim. Primeiro, a menina nos intervalos da prova, espoleta como a ladra alegre de um símbolo roubado: estampada no uniforme, Rayssa carregava com leveza incomum a bandeira nacional, realocada do lugar de baba e bílis, em que tem estado nos últimos anos, ao papel de convergência, de rememoração das semelhanças. Ver essa bandeira enxugar o choro emocionado da garota, que abre seu futuro em kickflips e rockslides, enternece, sobretudo quando o contraste é o verde-amarelo em colunas tortas e autoritárias, zumbis de um passado enterrado em cova rasa.
Em entrevistas, sempre que perguntada sobre sua felicidade durante a prova, Rayssa reiterou como se explicasse o óbvio: só estava se divertindo. Fato é que diversão dela foi construindo pouco a pouco esse conjunto de cenas radiantes, estranhas a um país que, no último ano, se acostumou (como sempre) a ver vidas ceifadas prematuramente. Rayssa ganhou, subiu ao pódio, e colocou ao lado da bandeira estampada a medalha de prata.
Mas foi ao final da entrevista, concedida à Globo à beira do pódio, que veio o lampejo desconcertante, a beleza do gesto mínimo e inusitado. Rayssa estica a medalha para mostrá-la à câmera e imediatamente os aplausos soam do extracampo. Então, quando a conversa parecia encerrada, ela chama o repórter e, por trás da máscara, solta – “ô, ele é maior fofinho”. O repórter demora um instante a entender; mais rápida, Rayssa repete apontando o indicador ao Miraitowa, o mascote olímpico preso ao buquê de flores. Encara o bichinho encantada, com uma admiração genuinamente infantil, de quem é capaz de encontrar beleza numa pelúcia. É nesse pequeno momento televisionado que está a fotogenia (se preferirem, telegenia), na menina que vê naquele um símbolo que sobrepõe a medalha, a bandeira, porque está ali a própria infância e o futuro, que as infâncias costumam carregar.
O segundo motivo pelo qual a cena de Rayssa retorna a mim é o 7 de setembro que se aproxima, prometendo a renaturalização da ordem e do progresso pelo escancaramento da via de costume, o autoritarismo, agora às claras, sem qualquer camuflagem. Não dá para saber até onde chegarão os vídeos e fotografias dessas manifestações que visam um futuro de passados em mise en abyme, mas o passado (e o presente) nos provam que vivemos num país bastante apto a produzir e registrar opressões. Contudo, contra a marcha que pretende retroalimentar nossos (vários) apocalipses diários, vale a lembrança desse instante de Rayssa e Miraitowa, mascote cujo nome é justamente a junção das palavras “futuro” e “eternidade”. O crepitar dessa fotogenia lembra que a cólera do passado que vai marchar se dá por conta da consciência de um futuro iminente, que quer escolher os próprios símbolos e se encantar por eles. Não pela via do medo ou do ódio; sempre pela alegria.