Querida Raquel

por Álvaro André Zeini Cruz

Querida Raquel,

Espero que essa carta a encontre depois de merecidas férias, afinal foram meses em que você arregaçou as mangas: vendeu sanduíche na praia, abriu restaurante, expandiu ao catering de uma multinacional, voltou à praia, reabriu restaurante, tudo isso entre ideias empreendedoras ligeiramente retratadas (às vezes restritas a um capítulo), que mal sustentariam uma matéria do “Pequenas Empresas, Grandes Negócios”.

Já que a Paladar vai de vento em popa, deixemos os negócios para lá; falemos um pouco de você, Raquel, a protagonista “Viúva Porcina”, “que era sem nunca ter sido”. É verdade que, na etimologia da palavra, você foi sim a lutadora primordial, a primeira a responder ao desafio incitado por uma traição tipicamente melodramática. Mas o protagonismo envolve também o despertar da compaixão e a cura de um defeito de caráter, aquilo que os manuais de roteiro resumem ao misbehavior.

Sim, Raquel, mesmo protagonistas admiráveis têm defeitos, maiores ou menores. Eles serão testados ao longo da trama: no cinema clássico, entre avanços e retrocessos, até que o clímax imponha a decisão da mudança; na telenovela, essa estrutura é absorvida e retrabalhada pela dilatação temporal e pelas reiterações típicas do gênero. Em tramas bem urdidas, isso costuma trazer certa verticalidade aos personagens, já que o caráter — reapresentado diariamente — vai se revelando e se aprofundando nos pequenos testes, que, por sua vez, costumam desaguar em desafios maiores.

Vejamos o caso de Raquel Regina, aquela que a baseou. Também golpeada pela filha, ela desembarcou nas areias cariocas com sanduíches naturais e uma crença — “sangue de Jesus tem poder”. Era uma mulher simplória, que despertava a compaixão do público ao enfrentar com garra as situações impostas pelo destino, mas que, ao mesmo tempo, testava a paciência desse mesmo público ao demonstrar uma ingenuidade que, não raramente, rompia a fronteira da tolice (também pelo tom gritado a la Porcina, que demorou para sair de Regina). Se a retidão de caráter não podia ser considerada um defeito, a incapacidade de autorregular a exposição desse traço tolo logo revelara-se uma fraqueza, sobretudo diante da força antagonista, batizada Odete Roitman.

Delineava-se, então, uma trajetória: para subir na vida num país de desonestos, Raquel não renunciaria a sua honestidade inabalável (característica vertebral à personagem e fundamental ao conflito), mas aprenderia a performar poder, compreendendo, principalmente, que muito do jogo se faz nos bastidores; não à toa, vários dos embates com Odete ocorriam em discretas retiradas, paralelamente a outros eventos (como o casamento de Leila e Marco Aurélio). Se, para fazer frente ao patriarcado-materno dos Roitman, teve que aprender o “jeitinho” (afinal, a institucionalidade não lhe faria justiça), o protagonismo também se garantiu no fato de que Raquel era quem melhor personificava o que Tania Modleski chama de um “olhar materno”, que olha para todos os núcleos, personagens e problemas com igual interesse e curiosidade (até para os jovens do clube!). Quando anunciaram que, desta vez, Raquel seria Taís, pode-se vislumbrar que essa trama — cuja evolução era do âmago à imagem — traria, agora, questões raciais. A trajetória implícita era a de uma mulher e mãe negra que teria não mais que contornar um degrau, mas superar um abismo histórico, cujas falhas e tremores permanecem 137 após a abolição da escravatura. Mas essa força temática ficou na promessa.

Ah, Raquel, é com tristeza que digo que, no papel, a Raquel negra de “Vale Tudo” aconteceu tanto quanto a Helena negra de Manoel Carlos. Em 2009, a segurança de Helena foi lida pelo racismo do público como empáfia. Tão lamentável quanto essa leitura, a saída encontrada pelo autor foi lançar Helena num poço humilhações; é provável que tentasse despertar no público a compaixão (esse valor dramatúrgico aristotélico), mas o efeito foi justamente minar a autoconfiança da personagem, aquilo que havia nela de mais interessante. Talvez o que Manoel Carlos ignorasse é que, apesar dos anos, este era o mesmo país que se indignara com o romance entre Zezé Mota e Marcos Paulo em “Corpo a Corpo”. E agora: que país é este?

Bem, Raquel, sejamos honestos, “Vale Tudo” não se esforçou em perguntar. Pelo contrário: fez-se como essa novela lisa, escorregadia de uma cena à outra, talvez porque foi soap como há muito não se via (aliás, cheirosinho, mas caro o tal Omo Ciclo Rápido). Se, no final dos anos 1980, o crítico Serge Daney já referenciava a televisão como um “caldo” de “ultra-fluidez”, “Vale Tudo” potencializa essa ideia, tratando o espectador como uma criança que ensaboa o chão para brincar de escorregar no porcelanato dos Roitman. Mas a telenovela é uma coisa tão transversal e viva que talvez a recepção indique bons ventos. Não passou desapercebido — e causou indignação! — que o tapa desferido por Tereza (Lilia Cabral), em “Viver a Vida”, foi reposicionado da violência física à simbólica na cena do encontro entre Raquel (de volta à estaca zero), Celina e Heleninha na praia, as madames pegando sol e você de sol a sol. Ah, sim, também não deixamos de notar que você — e seu fiel escudeiro Poliana — foi quem mais revisitou o fundo do poço, Raquel. É verdade que Ivan saiu do casamento de Heleninha sem história, mas continuou com carrão (não o Humberto) e logo abriu seu próprio negócio, sem precisar se submeter a chantagens, nem se sujeitar a voltar à base do mercado de trabalho. Fátima é outra que nunca ficou com uma mão na frente, outra atrás; bem diferente daquela de vidas passadas, que pernoitou no banco da praça com o filho no colo, antes de tentar vendê-lo por alguns milhares de dólares (aliás, explica para essa garota a função de um advogado, por favor).

Por sinal, rápida essa história da adoção, hein?! Claro que imagino seu cansaço, Raquel, mas a batalha maternal pela consciência de Maria de Fátima poderia ter rendido a vocês duas algum fôlego nessa trôpega reta final. É verdade que, desde o início, os conflitos entre vocês foram amenizados; proporcionalmente, creio que você e Fátima passaram muito menos tempo rompidas do que em 1988, o que colaborou nesse cozimento em banho-maria. Por outro lado, os imbróglios com Ivan se resolveram de forma célere: o casamento com Heleninha foi mais breve, e o caso extraconjugal inexistiu, limando também as chantagens e disputas de poder entre você e Odete. Os confrontos mais pontuais com a falecida dona da TCA (o diabo que a carregue) esvaziaram não só conflitos da camada mais prática/denotativa, mas o cerne temático dessa trama que, como disse a própria adaptadora, é a maternidade.

De antemão, me desculpo por bater na tecla Odete, Raquel, mas sabemos que a Sra. Roitman é incontornável. Até porque, se era você quem definia o foco narrativo em 1988, desta vez, foi Odete quem posicionou o olhar; e, como ela bem disse (contrariando a autora), não pela maternidade. O fascínio por essa nova Odete — que nasceu para ser pai e conseguiu ter vida própria, para além da antecessora — demostrou-se sintomático desta “Vale Tudo” de olhar desequilibrado, sem atenção equidistante aos diferentes núcleos e indivíduos. Como Odete, o grande imagista desta versão viu um mundo de cima, da presidência da TCA, mais especificamente, a partir dos LEDs e de seu caldo de píxeis. Fechou os olhos para os desvios de Marco Aurélio, encarou César como um malandro bobalhão, e Eugênio não mais como o mordomo cinéfilo, mas como um televisor ou outra mobília qualquer da casa. Usou Lucimar como merchandising social para, depois, descartá-la num happy end a fórceps, matando todo o apelo popular da pícara/ comentarista social da trama anterior. Diluiu o potencial de personagens antigos (como Solange, Renato, Eunice), novos (como Pascoal) e reinterpretados (como Gilda). Matou a “mãe ideal” e a curiosidade feminina (da qual fala Laura Mulvey) entre hiperfocos climáticos, fetichistas e de profundidade rasa.

Como Odete, que não conseguia dividir seu olhar entre os três filhos, “Vale Tudo” se deixou encantar pela parte mais resplandecente da trama, a ponto de decidir não ver mais nada. Pior: revestiu-se de uma lente monocromática, que afinou nuances e sobretons, contentando-se com a superfície dos matizes saturados, das piadinhas repetidas, dos agendamentos vazios. Ah, Raquel, numa trama que prometia aprofundar a descida ao abismo, sonhando com hipóteses de como fechá-lo, a impressão é de que mal fomos à praia, porque brincamos de mergulhar na piscina dos ricos. Mas se “Crepúsculo dos Deuses” e “O Rebú” nos ensinaram que piscinas são lugares propícios às tragédias, a dos Roitman de hoje é mais dada à farsa; não à toa, a ideia de um destino inescapável, desintegrador daquele corpo familiar, foi reduzida ao “quem matou” de romance de banca, desses para se ler na cadeira, revezando-se entre a caipirinha e a água saborizada (menos Afonso, que está treinando). De qualquer forma, ficamos sem seus sanduíches.

A parte boa, Raquel, é que o povo — essa coisa meio mambembe, mal retratada em “Vale Tudo” — percebeu, a ponto da pergunta “quem matou Odete Roitman” vir acompanhada por outra: “onde está Raquel?”. Você estava ali, Raquel, ocupada em se levantar das quedas, mesmo em passes de mágica, sem que houvesse encenação o bastante para essa representação. Estava ali, à margem da imagem, não literalmente como em outros momentos da teledramaturgia, mas simbolicamente, escanteada por essa trama de Afonsos e Heleninhas, desconhecedora do mundo, despreparada para retratar as nuances e possibilidades para além do “ter”. Em 1988, a questão de Raquel era “ser”, pois ela suspendia a crença de que o sangue de Jesus tinha poder para acreditar que o poder estava no sangue que corria em suas próprias veias (crença que se traduzia na progressão de suas escolhas e ações). Nesta, esse arco interno inexistiu, mas, apesar dos pesares, a ideia de “ser” se reconfigurou: Raquel é Taís Araújo, e é a partir dessa dupla encarnação em que o público reconhece não só as possibilidades entre atriz e personagem, como os sucessivos erros e boicotes impostos a ambas. Nesse sentido, a dobradinha compaixão & identificação nasce não mais do intradiegético, mas de uma costura complexa entre a personagem que poderia ter sido e a atriz que é, levando a imaginação supositiva a hipotetizar não um futuro perfeito, mas um futuro do pretérito, aquilo que Raquel Taís teria sido caso uma série de oportunidades narrativas tivessem sido abertas. É a partir disso que se instaura não mais um reconhecimento típico do star system global, mas uma empatia profunda, singular e, talvez, inédita entre a história que não houve (da personagem) e a história que há (da atriz). A pergunta “onde está Raquel?” carrega outra em si: “cadê Taís?”.

Ah, Taís, se o público pergunta, é porque sente falta da sua presença cênica, e se sente falta, é porque percebeu que você nasceu para ser Raquel, ainda que esta Raquel não tenha nascido para que você coubesse nela. O paradoxo da viúva Porcina pode ser atualizado a você no tempo presente, dando uma outra volta no parafuso: a protagonista que é sem nunca ter sido, mas é; porque a ficção não quis o protagonismo de Raquel Acioly, mas o registro permanece para quem está do outro lado da tela. O público, logo mais, descobrirá quem matou Odete Roitman, mas levará para sempre um outro mistério: onde estaria Raquel Taís numa “Vale Tudo” menos acovardada, menos acomodada? Onde chegaria Taís como protagonista de uma “Vale Tudo” disposta a ir ao tudo ou nada?

Sucesso a você, Raquel. E recomendações ao Poliana, Gilda e Paxcoal.

Aproveite as férias, Taís, você fez uma Raquel cuja memória viverá na promessa. E é uma atriz cujo protagonismo segue maior do que os personagens.

Álvaro André Zeini Cruz