por Álvaro André Zeini Cruz

É a quarta noite. Marthe (Isabelle Weingarten) se lança na escuridão bressoniana da Cidade-luz, descendo as escadas até as margens do Sena. Está nas redondezas da Pont-Neuf, onde, na primeira noite, fora resgatada por Jacques (Guillaume des Forêts). Ele, de novo, a segue, encontrando-a à beira do rio; o rosto dela tem um rubor sólido, que se contrapõe às ondulações, à água “sensualmente estruturante”. No contracampo, a luz torna Jacques etéreo, um fantasma pálido que paira atrás daquela mulher. Quando Marthe vai até ele, Jacques se declara e a abraça, mudando o plano para um ¾ dele, de costas; enquanto ele se dilui nas sombras, ela, que queria livrar-se do próprio corpo, mais uma vez, se corporifica. Então, a mão direita de Jacques passa do rosto a um tatear do corpo de Marthe, mas a mão dela contém a ação. A partir daí, as mãos dadas traçam narrativa e mise en scène próprias, que se estenderão ao longo desses minutos finais de Quatro Noites de um sonhador.
Quando volta à superfície, deparam-se com a cantoria de um grupo de jovens; a voz e a flauta flamulam como os lampejos lançados pelo rio a partir dos barcos. É uma noite de entornos frios, mas a mão de Jacques envolve o ombro de Marthe, puxando-a para si; os rostos, agora, impressos materiais, uniformemente humanos. Dali, caminham até uma escadaria e, ao se sentarem, afrouxam as mãos; elas não mais se seguram, mas repousam uma sobre a outra. É Jacques quem, então, se desvencilha ao perceber o amor não correspondido, mas acho que a mão não chega a completar 24 fotogramas assim, pois Marthe a intercepta quase que imediatamente. Desta vez, é ela quem o envolve pela cintura.
Rematerializados os corpos, é a vez da cidade se reconstituir entre tráfegos e tudo o que há de estacionário na transparência das vitrines. Jacques tenta se soltar para se perder em meio à fluorescência sorumbática, mas a mão de Marthe manda: ora o conduz, ora o detém pelo braço. Ela reconquista a confiança de Jacques e permite que ele a leve (a mão no ombro) a um restaurante. Lá, o primeiro plano interno tem, de novo, a mão dele, acrescentando água aos xaropes nos copos. Marthe bebe o refresco e, para se esquivar do toque de Jacques, cruza as mãos sob o próprio queixo. Rejeitada, a mão dele escorrega sob a mesa, surgindo sombreada sobre o joelho dela. A voz de Marthe afirma uma mentira: ela não ama mais o outro homem, aquele que ainda a faz sofrer, mas o convencimento, o toque máximo dessa dissimulação, vem pelo gesto, na contundência da mão dela ao invadir esse em quadro privado, os dedos agarrando-se aos dele. Sob o tampo da mesa, as mãos se acariciam, se perdem, se reencontram, até que, juntas, apoiam-se ao tampo, impulsionando o casal para que se levante e, dali, encarem o que der e vier.
O raccord gráfico que marca esse trânsito entre interna e externa se dá, justamente, na conjunção entre os dedos finos de Marthe e as falanges largas de Jacques, que culminam nas unhas sujas de tinta. De volta à rua, esse dedos rústicos — mas dedicados à arte! — tateiam o tecido delicado de uma echarpe antes de envolvê-la em Marthe, como se verificasse se a trama é digna da pele. Na outra trama, a das mãos, um artista de rua dedilha um violão, enquanto Marthe discursa sobre dali para frente. Mas, no instante em que ela toca a mão de Jacques para voltar a conduzi-lo, ele se distrai; olha para cima, enquanto ela vê algo no extracampo. Bresson nos engana com a lua, a luz que distrai Jacques, e só depois revela o homem por quem Marthe quase se matou. Eles não dividem o quadro, mas ela escapole do campo ao contracampo, da mão à contramão, para reencontrá-lo, beijando-o diante da câmera. Quando ela volta ao quadro de Jacques, ele ganha o “contrabeijo” que aparenta não chegar à boca, permanecendo entre as bochechas e o pescoço. A câmera esconde os rostos, deixando em evidência apenas os dedos dela afundados nos cabelos do sujeito que ela deixará, com quem nunca realmente esteve.
O fluxo de passantes leva Marthe de volta ao homem do passado, refeito num presente que, para ela, deixa de ser rarefeito. As mãos contornam-se reciprocamente e eles se diluem na multidão. As de Jacques voltam ao gravador, às tintas e pincéis; a voz e o tato como forma de suprir, criar, “ver o que não está lá”. De certa maneira, Bresson filma o avesso das Mil e uma noites: se Sherazade dilatava a narrativa para escapar da morte, Marthe parte da morte para uma narrativa breve, um conto das quatro noites que a trouxeram à tona, de volta ao mundo e à vida.