Quando ser inteiro é ser imperfeito

Ítalo Calvino e a ironia que separa a rigidez moral, os extremismos e a dificuldade de convivência quando não há integração entre as diferentes facetas do ser humano

por Matheus de Melo

“Prazer e Dor” – Leonardo Da Vinci, 1490

Italo Calvino, em O Visconde Partido ao Meio, utiliza a fantasia como instrumento para explorar, com sensibilidade e ironia, as complexas camadas da condição humana. A obra narra a história do Visconde Medardo de Terralba, que é literalmente partido ao meio por uma bala de canhão em uma guerra contra os turcos. A partir desse evento surreal, surgem duas metades que passam a viver separadamente: uma representa o mal absoluto e a outra, o bem exagerado. Por meio dessa cisão física e simbólica, Calvino constrói uma poderosa alegoria sobre a dualidade humana, os desequilíbrios da sociedade e a fragilidade da identidade individual.

No plano psicológico, a divisão do Visconde evidencia a luta interna que habita cada ser humano. Nenhuma das metades consegue existir plenamente: a parte má, dominada por crueldade e egoísmo, espalhando terror e medo; enquanto a metade boa, apesar das intenções nobres, torna-se insuportável em sua tentativa de perfeição moral. Calvino questiona, assim, os limites da bondade e da maldade, mostrando que o ser humano não é um bloco homogêneo de virtudes ou defeitos, mas uma síntese complexa e contraditória de ambos. A verdadeira humanidade, sugere o autor, reside na integração dessas forças opostas — é na convivência entre luz e sombra que a personalidade se constrói de forma autêntica.

Sob uma lente social, a presença das duas metades do visconde afeta diretamente a vida da comunidade de Terralba. O lado maligno impõe tirania e medo, enquanto o lado bondoso, apesar das boas intenções, age de maneira paternalista, sem compreender verdadeiramente as necessidades das pessoas. Essa dinâmica revela uma crítica sutil às estruturas de poder autoritárias e às ideologias extremas, que, mesmo quando motivadas por valores “superiores”, desconsideram a complexidade das relações humanas. A sociedade, segundo Calvino, não precisa de figuras idealizadas ou tiranas, mas de líderes íntegros — no sentido mais literal e simbólico da palavra.

A reconciliação final das duas metades do visconde, que resulta em um homem inteiro novamente, traz um desfecho simbólico: só quando o indivíduo reconhece e integra suas diferentes facetas — o bem, o mal, os desejos, as falhas — é que pode alcançar equilíbrio e autenticidade. Essa mensagem profundamente humana e existencial torna O Visconde Partido ao Meio uma obra atemporal, que ultrapassa a fantasia e nos convida a refletir sobre quem somos, como agimos e de que forma lidamos com nossas próprias metades.