Prova de redação: pensamentos “desconexos” sobre a regulação do streaming e o cenário audiovisual brasileiro

por Álvaro André Zeini Cruz

Frame de “O Melhor está por vir”: Giovanni (Nanni Moretti) em reunião com executivos da Netflix

É incontornável destacar a coincidência (ou seria sincronicidade?) do sorteio deste ponto um dia após a divulgação do texto provisório do PL 8889/2017, que visa regular os streamings e outras plataformas audiovisuais no Brasil. Antes de tudo, é preciso lembrar que regular não é censurar — como sempre fizeram crer as campanhas do setor de radiodifusão —, mas criar regras para que os “players” joguem um jogo mais equilibrado, preocupando-se não só com o caráter mercadológico, mas também cultural e cidadão do audiovisual.

Nesse contexto, causaram indignação aos realizadores brasileiros os números apresentados no projeto de lei: a cota de tela de apenas 10% para conteúdo nacional (quando, para os grandes conglomerados de sala de cinema, a cota chega a 16%), e Condecine de 4% para os streamings e 2% para o YouTube, valor abaixo do que queria o Ministério da cultura (que buscava 6%) e profissionais do setor (que defendiam 12%). O texto ainda indica que esses valores podem sofrer abatimentos caso streamings invistam em formação de mão-de-obra especializada no país, abrindo uma série de questões: essas atividades formativas dialogariam com a pluralidade cultural do país ou apenas imporiam padrões industriais hegemônicos? E esses profissionais, encontrariam diferentes possibilidades de mercado ou estariam restritos à prestação de serviço que rege, hoje, a relação entre streamings e produtoras?

Se é verdade que o audiovisual é parte importante de uma indústria cultural (ou, usando uma ideia expandida, de uma economia criativa), é também verdade que uma das assimetrias do setor está posta na própria ordem dos termos, com a cultura sujeita à indústria e, consequentemente, às ideias de produto e consumo. Não se trata exatamente de uma novidade: nosso modelo de televisão linear privado vê o telespectador antes como consumidor e depois como cidadão. Já no cinema, a tensão entre indústria e cultura aparece na relação entre Ancine e Secretaria do Audiovisual, muito embora o modelo de leis de incentivo por renúncia fiscal privilegie abertamente um cinema industrial.

Essas tensões seguem não resolvidas; segundo a pesquisadora Lia Bahia, porque o audiovisual brasileiro ainda se concentra na ideia de produto e não em um entendimento sistêmico. Isso faz com que a política pública se restrinja, muitas vezes, a uma política de fomento, sem se preocupar como as obras chegarão às telas. Soma-se a esse cenário a entrada dos streamings e das novas formas de consumo, mas o que poderia resultar na democratização da distribuição e acesso, acaba se rendendo ao poder dessas grandes corporações, que vendem uma pseudo-autonomia: o on demand está a mercê de catálogos cada vez mais restritos e voláteis, e a publicidade  — uma anti-autonomia por si só, já que captura o olhar do público e diz “eu vou te mostrar o que é bom” — pulveriza ainda mais experiências já fragmentadas.

Nesse cenário, os streamings e as redes sociais capitaneiam o que Bahia, Butcher e Tinen chamam de uma dupla economia, baseada na captura da atenção e dos dados. É também nesse sentido que Giselle Beiguelman diz que, com as imagens estendidas aos dedos e a interatividade, as imagens que produzimos e consumimos criam um neopanóptico, uma vez que a vigilância e a captura dos dados permitem as grandes empresas retroalimentar essa cadeia de consumo, produzindo e distribuindo conteúdo a partir de algoritmos (a série House of Cards é um caso conhecido de produção codificada a partir da captura de dados usuários da Netflix). 

Empresas transnacionais, Netflix, Amazon, HBO Max e outros grandes streamings criam uma espécie de tela global em que a internacionalização da produção é homogeneizada por determinados parâmetros narrativos e estilísticos (não à toa, na semana ABCine de 2023, houve uma palestra sobre os LUTs da Netflix). Uma diversidade até surge na tela, mas domada e formatada no que Renato Ortiz chama de “padrão internacional-popular”, isto é, diferenças e pluralidades são capturadas e mediadas por um poder hegemônico, trazendo para o campo audiovisual o que Milton Santos denomina como “globalitarismo”, uma globalização autoritária.

Em uma perspectiva mais prática, esse padrão imagético-sonoro impõe também formatações produtivas, que, novamente, capturam talentos brasileiros para produzirem obras inviáveis de terem um CPB, já que o direito patrimonial é de empresas estrangeiras. Nesse sentido, as produtoras brasileiras passam a ser meras prestadoras de serviço, sujeitando-se às imposições das empresas e sujeitando os profissionais contratados a uma crescente uberização do mercado, em que não há direitos trabalhistas, tampouco estabilidade de trabalho. Essa mudança de mercado, trazida pelos streamings, tornou-se transversal, afetando inclusive a Globo, que, por décadas, baseou-se no star-system hollywoodiano para manter exclusividade sobre seus talentos.

O que na teoria pode parecer oxigenado o mercado, na prática, sujeita profissionais a demandas pontuais, acrescida de outras assimetrias históricas (de gênero, raciais, etárias, regionais). Se por um lado, festejou-se a movimentação de 70 bilhões de reais e a criação de 600 mil postos de trabalho no setor, por outro, é preciso lembrar que muitos desses trabalhos não se configuram em empregos, e que a distribuição de oportunidades e valores segue desigual. Um exemplo: pesquisa recente realizada pela ABRA apontou que, em 2024, a renda média de 40% dos roteiristas associados foi de pouco mais de um salário-mínimo mensal.

A menção a Globo é oportuna para pensar o posicionamento do principal grupo midiático brasileiro nesse contexto de transformações: embora siga líder de audiência na TV aberta, é notável que o público hoje está mais pulverizado, o que tem provocado a Globo apensar uma série de estratégias para garantir sua predominância no imaginário do brasileiro. Além de uma presença cada vez mais contundente em redes sociais (que, há alguns anos, sequer eram nomeadas em programas da emissora), onde despeja a corte de seus conteúdos, a Globo tem investido na sua plataforma de streaming, seja para pensá-la como primeira janela de alguns produtos, seja para resgatar seu acervo, o que vai ao encontro de uma tendente comercialização da nostalgia. Também tem pensado em outros gêneros e formatos, como a ficção influenciada por doramas e as novelas verticais, cuja referência vem de redes como o TikTok e o Kwai. Mesmo antenada às novas possibilidades de produção e consumo audiovisual, a Globo, em evento recente para o mercado publicitário, deixou transparecer seu incômodo ao comparar os números de sua novela Vale Tudo, aos de Beleza Fatal, da HBO Max, muito inferiores. Ao expor esses dados, a emissora lembrou a falta de transparência dos streamings na divulgação de seus números e, de quebra, a força massiva da TV aberta; aquela que, segundo Dominique Wolton, é democrática justamente porque deseja conversar com todos os públicos, criando intersecções entre eles. A fragmentação dos streamings costuma criar recepções mais nichadas, mas não necessariamente menos barulhentas: o incômodo com Beleza Fatal se deu, provavelmente, pela repercussão da novela, mesmo com números tão abaixo dos da Globo. O episódio revela uma característica desses novos tempos audiovisuais — a economia da atenção não é meramente quantitativa, mas qualitativa.

Neste contexto, o cinema brasileiro passa por um bom momento no que concerne ao interesse do público, muito por conta do Oscar de Ainda estou aqui (o que demonstra o quanto o público ainda valoriza esse tipo de legitimação externa). O momento é, portanto, propício para que se efetive ações que driblem o eterno gargalo, do qual Ainda estou aqui escapou (porque tinha dinheiro): é oportuno que se aproveite esse entusiasmo para pensar políticas públicas estruturantes, que tratem não só do produto, mas de sua distribuição e exibição. E se na ótica capitalista é necessário pensar na demanda, cabe aqui colocar a necessidade de que essas políticas pensem também na formação audiovisual do público, seja em iniciativas recorrentes (em espaços como as universidades), seja através do fomento de festivais regionais, já que, como ressalta Marcelo Ikeda, esses eventos não se restringem à exibição, mas partem de uma curadoria criativa para aproximar a realização audiovisual — do fazer ao refletir — de cotidianos locais e regionais, explicitando que, se as imagens cada vez mais nos cercam, nós também temos o direito de cerca-las para fazê-las nossas. Uma educação audiovisual diversa e horizontal pode ser uma saída (entre outras) para os tantos gargalos anteriores, (im)postos por hegemonia e monopólios. E se hoje as imagens são touch, que elas sejam cada vez mais tocadas por nós (e cada vez menos pelas mãos invisíveis do mercado), para que os olhares não fiquem submissos aos LUTs alienantes da Netflix e companhia.