por Álvaro André Zeini Cruz

Diferente do que ocorreria a um Roitman, demandas de trabalho e um período intenso de estudos me afastaram da cobertura “oficial” de Vale Tudo. Houve um ou outro comentário no Instagram da Pós-créditos, é verdade, mas a crítica folhetinesca semanal — proposta inicialmente em textos mais elaborados — não acontece desde o capítulo 60. Entre essa elipse não planejada, veio a “semana especial”, com o embate do vestido de noiva rasgado, o casamento de Maria de Fátima e a aquisição da Paladar, evento transformador na vida da mocinha, Raquel, e de seu sócio, Poliana. A audiência respondeu, e a trama, que está longe de ser um flop, teve merecida repercussão. Mas repassando os últimos acontecimentos para este texto, uma pergunta me pareceu incontornável — vale a pena seguir escrevendo semanalmente sobre Vale Tudo, como era a proposição inicial? A resposta é tão evidente quanto a pergunta: não. Nas próximas linhas, a justifico.
A essa altura, com a novela adentrando a segunda metade, já estão colocados os defeitos e qualidades do remake escrito por Manuela Dias e dirigido por Paulo Silvestrini. São características cristalizadas, exaustivamente evidenciadas e debatidas pela crítica televisiva feita a sério. E apesar de reconhecer que a recorrente desconfiança com a novela encobre parte de seus acertos, é também preciso admitir que Vale Tudo parece ter posto todas as cartas na mesa — as boas e os blefes. Nesse sentido, o piso foi devidamente delimitado pelos bebês reborn; já o teto está abaixo da altitude alcançada pelos aviões da TCA de 1988.
A impressão é, de fato, aérea: Manuela Dias parece reaproveitar as peças da aeronave original para montar uma asa-delta colorida e resplandecente, propondo não mais o trajeto turbulento (e emocionante) sobre o Brasil de outrora, mas o voo suave por uma brasilidade de proveta, pano de fundo ao melodrama acelerado e aos arcos click-bait, que cruzam a trama como brisa requentada. É nesse sentido que a saia de Tiago surge mais como um agendamento líquido do que como um conflito consolidado entre personagens e narrativa (vale também para a assexualidade de Poliana). Trata-se, portanto, de um tour de vislumbres, em que o texto de Dias lembra menos o de Gilberto Braga do que o de Manoel Carlos, sobretudo a partir de Mulheres Apaixonadas: na novela estrelada pela Helena de Torloni, o cronista do Leblon focalizava uma das tramas, alternando-as a cada duas semanas, enquanto mantinha as outras em banho-maria. Em operação parecida, Vale Tudo adapta essa fórmula à rapidez de um feed, mas mantêm intactos os erros que assolaram as últimas novelas de Maneco, como a progressão desigual entre histórias e os personagens esquecidos na fila do pão. Quem dera fosse a única semelhança: a Heleninha de Paolla Oliveira lembra mais Heloísa — a ciumenta obsessiva, vivida por Giulia Gam em Mulheres Apaixonadas — do que a referência original, interpretada por Renata Sorrah. Em prol de uma suposta complexidade, é a personagem mais sacrificada nesta releitura, ainda que não se possa dizer que seja inconsistente: numa trama de volatilidades, poucas coisas são tão estáveis quanto sua obsessão por Ivan.
A escolha por acentuar os embates entre Heleninha e Raquel é compreensível, mas o tom adotado é dos melodramas menos sofisticados; falta subtexto e sobra climão, como na cena do jantar na casa de Bartolomeu e Eunice, exibida ontem. Heleninha chegou lá de surpresa, depois de instalar um app espião no celular do marido (artimanha que não durou um capítulo), mas acabou surpreendida ao dar de cara com Raquel. Aproveitando o indigesto petit gateau para perguntar sobre o Paladar da rival, Heleninha plantou uma preocupação providencial acerca da sociedade oculta de Celina, mas se esqueceu (como bem lembrou Chico Barney) que Raquel vencera mais um reality fictício de Claude Troigros (um entrecho sem muita serventia, já que nenhum personagem o associa à subida da protagonista). Ah, sim, a aproximação e sociedade entre Raquel e Celina, certamente, teve uma construção mais interessante e equilibrada do que na orginal, mas se o spoiler que tem sido ventilado for verdadeiro e jogar Raquel, de novo, na lona (já não basta o incêndio desnecessário da Paladar), Manuela Dias pode pegar seu crachá do clubinho Michael Haneke de autores sádicos (perdendo só para a crueldade da Dra. Ana, que, ontem, deixou escapar um sorriso diante do destempero de Heleninha por Ivan).
Sob a brisa abafada desse passeio de asa-delta, outras coisas não param em pé; caso da investigação seletiva de Odete sobre Maria de Fátima, incapaz de descobrir o caso extraconjugal da nora. Odete também a investigava em 1988, mas era uma Odete menos centralizadora, que costumava subestimar mais seus aliados (como Fátima e Marco Aurélio), abrindo brechas para que ratos fizessem a festa. Fátima, por sua vez, era mais cuidadosa; além disso, a reveladora prova do vestido de noiva (que perdeu a espacialidade fundamental da cena original) acontecia num outro momento da narrativa, quando havia ainda capítulos de sobra para que suas mentiras fossem gradativamente testadas. Essa, aliás, se tornava uma das atrações da novela: acompanhar os cursos mirabolantes que Fátima inventava para se encontrar com César, tendo que desviar da desconfiança de tia Celina, além de uma série que quiproquós envolvendo pulseiras e anéis. Desta vez, a diversão será, aparentemente, mais enxuta, já que não há tempo para essas pequenas (e deliciosas) dobras melodramáticas (por outro lado, há ainda uma série de grandes viradas para acontecer). Fátima é outra cuja ambiguidade resvala em motivações movediças: se na original, ela tentava retomar a carreira de modelo para competir com a atenção social recebida pela mãe, nesta, o retorno à vida de influencer faz tanto sentido quanto sua capacidade de estar com César o tempo todo, sem levantar suspeitas. César, por sinal, é a personificação do nonsense: entre pequenos golpes e a pretensão de retomar a carreira de modelo, ele segue entre ações incoerentes ao cargo fantasma que ocupa na TCA. Não é mais um bon vivant, tampouco é o articulista/chantagista feito por Riccelli, que retroalimentava a ambição de Fátima. Agora, restringe-se ao papel de orelha luxuosa, que sobrevive graças a Olavo, um coadjuvante bem mais genuíno do que o protagonista com quem contracena.
Lá se vão três páginas de texto e o leitor deve estar se perguntando: por que suspender essa cobertura crítica semanal se, pelo jeito, há tanto a ser dito? A resposta sincera é que as linhas acima, de alguma forma, repetem ou reposicionam ideias e apontamentos já antes trazidos de alguma forma. Porque se Vale Tudo parece ter revelado já todas as suas cartas, a crítica como jogadora secundária e decorrente, é levada a fazer o mesmo; aí ou o jogo entra num completo marasmo, ou acaba. Abro aqui uma dupla constatação (e uma mea culpa): a primeira é que o formato semanal não se mostrou propício a uma novela que deixa marcas tão breves; o trabalho diário, provavelmente, representaria um esforço mais justo para que a crítica cumprisse seu papel — tão bem descrito por Jean Claude Bernardet — de descobrir algo na obra. Mas não uso a palavra esforço à toa: no caso de Vale Tudo, tem sido preciso apertar os olhos tanto para enxergar uma qualidade nova (que já não tenha sido devidamente destacada) quanto para encontrar um defeito que já não tenha sido exaustivamente cutucado. Dito isso, o ofício da crítica não é um vale tudo: nem sempre a persistência exaustiva do olhar e da escrita vale para que se vislumbre, vez ou outra, um movimento de câmera ou enquadramento que transformem o produto em obra. Também não faz sentido debruçar-se por semanas a fio sobre os mesmos elementos dignos de elogio (no caso de Vale Tudo, o elenco bem escalado e os lampejos mais inspirados das direções individuais, que conseguem escapar do conceito da direção geral). A ideia desta crítica é, justamente, descobrir crises na reiteração folhetinesca, capturando a forma sem se deixar enformar; por “culpa” de ambas as partes, não era o que andava acontecendo.
Assim, é preciso que a crítica saiba o momento de recuar, até em respeito ao trabalho de quem realiza a novela — obra que envolve centenas de pessoas em negociações complexas, com restrições e concessões que costumam vir de cima para baixo —, mas também em respeito aos leitores e ao próprio ofício da crítica, que não merece desaguar num resenhismo conciliado (entre pequenas crises repetitivas) com uma novela conciliadora. Não é uma despedida de Vale Tudo; continuarei acompanhando a trama, atento, principalmente, à plot do filho ressuscitado, que me parece uma das escolhas mais ousadas da nova versão. Os comentários seguirão esporádicos no Instagram da revista, mas os textos deixam de ser semanais (já deixaram) para despontarem de maneira mais genuína, sempre que houver lastro e monta para tanto.