Plano presságio

por Álvaro André Zeini Cruz

Louca Escapada de Lou Jean (Goldie Hawn) e Clovis (William Atherton) começa mais como uma escapulida, já que se dá pela porta da prisão. Contudo, logo se converte nesse subgênero do “filme caçada”, por onde passaram diretores como Arthur Penn, Clint Eastwood, Michael Cimino, Ridley Scott, entre tantos outros. Aqui é Spielberg, que volta à estrada depois de Encurralado; desta vez com imagens, veículos e orçamento preparados não mais para a televisão, e sim para a tela que viria consagrá-lo como cineasta a partir dali.

Mas a televisão ressurge justamente num recesso da escapada cinematográfica, e sob uma dupla camada de janelas – a do trailer vizinho e a daquele em que Lou Jean e Clovis param para pernoitar durante uma trégua com a polícia. Deitada na cama, seminua, Lou Jean anuncia um filme grátis na janela vizinha; não um live action, mas um desenho que anima uma conhecida escapada – aquela infindável dada entre Coiote e Papa-léguas. As atenções não recaem sobre o desenho de imediato; no primeiro momento a sós que têm sob um teto e algum conforto, Clovis se declara a Lou Jean e ao filho, cujo resgate é objetivo da empreitada. Eles se olham, e os rostos em perfil ocupam as laterais do quadro; o vácuo entre eles é preenchido pela perseguição animada, reduzida a um borrão desfocado. Quando Clovis conjectura a possibilidade de não conseguirem resgatar o bebê, Lou recoloca um chiclete mascado na boca e desvencilha o olhar, deparando-se com a televisão alheia. Ela, então, deseja que o desenho tivesse som, e, num oferecimento apaixonado, Clovis se dispõe a dublar o pega-pega televisivo.

O casal se diverte como se a animação coroasse a fuga dos dois, encarada como uma loucura romântica, como uma escapadela de dois adolescentes. O riso de Goldie Hawn rasga e sequestra a cena, modulando os assobios, buzinas de Papa-léguas e outros foleys vocais feitos pelo companheiro. O ruído sincronizado às dinamites antecipa uma explosão que extravasa do desenho sobreenquadrado à montagem fílmica; é a deixa pra que Lou Jean seja arremessada para o extracampo, para que o rosto de Clovis divida o quadro com o reflexo do desenho animado. Esse close confrontado pela volatilidade da animação refletida talvez seja o plano mais complexo de Louca Escapada: enquanto o Coiote despenca – como todas as vezes, isto é, como personagem de traço e tinta pronto a ser revivido na próxima esquete farsesca –, Clovis desmantela o sorriso num semblante de quem parece finalmente entender que a caçada de carne e osso é jornada, e não aventura episódica. Assim, a epifania é de que haverá um desenlace conclusivo; a dúvida – já com uma desconfiança bem estampada – é: serão eles Papa-léguas ou Coiotes? Em um filme de externas, estradas, escapadas, o pavio queima para estilhaçar os arredores e manter de pé o plano essencial da decupagem: o rosto sobreposto pelas mortes violentas e repetitivas da animação infantil; a face que concatena um marcador melodramático, aqui posto de maneira singular – o presságio. Plano que faísca a autoria de um jovem Steven Spielberg.