por Álvaro André Zeini Cruz

Ao comparar The White Rose, de D. W. Griffith, e Forrest Gump, de Robert Zemeckis, Ismail Xavier encontra, em comum, as jornadas de penitências impostas às duas protagonistas mulheres que – separadas por um século de cinema – ousaram desviar da moralidade cristã-burguesa vigente. Xavier intitula esse texto como Parábolas cristãs no século da imagem.
A questão que Xavier aponta é que essa moral cristã permanece em constante negociação com a ficção cinematográfica (e também com a televisiva). A telenovela não escapa desse trâmite, principalmente porque sua herança melodramática e folhetinesca carrega a própria consolidação burguesa. Em tratativas complexas entre norma e experimentação, o gênero passeia entre progressismos e conservações (às vezes, retrocessos). Nesse sentido, apesar da roupagem atualizada, Pantanal (2022) continua a carregar a moral de um Brasil profundo – para o bem e para o mal.
Benedito Ruy Barbosa é o autor televisivo que melhor abriu caminhos ficcionais aos rincões do país. Suas viagens a um Brasil agrário e arcaico, geralmente envolvem sagas patriarcais, reguladas, portanto, por uma masculinidade autoritária (arriscando-me, aqui, a um pleonasmo). A proposição desses universos é, por si só, uma negociação com a telenovela como gênero, que, como coloca Tania Modleski, emula o olhar de uma mãe ideal, lançado (geralmente) sobre um espaço doméstico agenciado por mulheres. Há mulheres marcantes nas obras de Benedito (Juma e Maria Marruá, de Pantanal, Buba e Eliana, de Renascer, Luana, de O Rei do gado), mas também não faltam casos de atrizes insatisfeitas com o destino de suas personagens (sendo conhecidas as reclamações de Adriana Esteves, em Renascer, e Glória Pires em O Rei do gado).
Adaptada por Bruno Luperi (neto de Benedito), a releitura de Pantanal sob o padrão Globo de produção ganha ares contemporâneos, trazendo discussões como feminismo, desenvolvimento sustentável, veganismo. Mas essa nova capa – estilizada pelas paisagens pantaneiras vistas em drones – não abafa a moral cristã nuclear, personificada pelo protagonista-patriarca José Leôncio (Marcos Palmeira). Pai de Jove (Jesuíta Barbosa), Tadeu (José Loreto) e José Lucas de Nada (Irandhir Santos), o fazendeiro, a princípio, conhece a paternidade apenas dos dois primeiros, filhos dele com Madeleine (Karine Telles) e Filó (Dira Paes), respectivamente. Ainda assim, só reconhece abertamente a filiação de Jove, o herdeiro oficial, aquele que, recém-nascido, fora levado a cavalo pelo pai para conhecer os limites de seu patrimônio.
Surge um conflito típico das novelas de Benedito: a desarmonia entre pai e filho. Em Renascer, a rejeição de José Inocêncio (Antônio Fagundes) por João Pedro (Marcos Palmeira) se dava, não por uma dessemelhança entre eles, mas porque o nascimento do caçula marcara a morte da mãe, Maria Santa (Patrícia França). Em O Rei do Gado, o descompasso era entre o fazendeiro-empresário self made man (Fagundes, de novo) e o filho bon vivant (Fábio Assunção). Em Pantanal, José Leôncio é a representação desse Brasil cordial que Benedito defende – uma espécie de éden agrário, isolado, regido no fio do bigode –, enquanto Jove é o jovem perdido e alienado, produto da vida urbana, da criação longe do pai e da frivolidade da família materna.
Filó sintetizou o conflito quando, capítulos atrás, constatou que Jove e Tadeu lutam não pela herança, mas pelo amor do pai. Contudo, José Leôncio mantém-se como força motriz que intrinca e retroalimenta um impasse simples (a princípio) de ser resolvido: o pai nega ao herdeiro natural – que tem uma visão de mundo consonante a dele – o destino diante dos negócios da família, pois trata-se do filho bastardo (ainda que Filó, a mãe de Tadeu, seja sua atual companheira). Prefere Jove, que conjuga a filiação do matrimônio ainda efetivo (uma vez que a separação não resultou no divórcio) ao fato de ter estudo, um progresso admitido porque pode perpetuar economicamente esse patrimônio.
Jove, portanto, é filho da moral cristã e da meritocracia moderna; falta a ele o talho e o trato para que se enquadre a esse universo viril pantaneiro, para que se torne um peão. E se Juma é, sem dúvida, uma das personagens femininas mais marcantes de Benedito, essa mulher-onça – que, como a mãe, se transforma em bicho para proteger-se dos perigos dos homens –, deverá consumar seu amor não na tapera humilde deixada pelos pais sem-terra, mas na casa e no casamento que dará manutenção ao patrimônio do patriarca. Acaba cooptada como Filó, que, levada pelas circunstâncias, é relegada ao papel de companheira não assumida, tal qual o filho. Madeleine, a esposa que quebra o juramento matrimonial ao abandonar o marido, também não é poupada: antes do destino trágico – que na trama original atendeu a um pedido de afastamento da atriz Íttala Nandi, e que deve ser mantido –, a moça fútil (agora influencer) vai sendo pouco a pouco esvaziada – a figura passional, vivida por Bruna Linzmeyer na 1ª fase, tem sido reduzida à caricatura, apesar dos esforços da ótima Karine Telles.
Ainda que não se possa analisar o discurso completo, uma vez que a narrativa ainda está em curso, é certo que, apesar das concessões ao tempo (como os discursos engajados de Guta), continuam, em Pantanal, as parábolas cristãs que atravessam as imagens. Resta saber se, na releitura de Luperi, isso será um dado, uma antítese, ou se será a ideia governante, isto é, a própria tese.