Pantanal e o homem cordial virtual

por Álvaro André Zeini Cruz

Se as novelas de Benedito Ruy Barbosa tivessem subtítulos, provavelmente seriam: Pantanal (1990) e o escapismo através do homem cordial; Renascer (1993) e o encantamento pelo homem cordial; O Rei do Gado (1996) e a modernização do homem cordial; Velho Chico (2016) e a morte do homem cordial. Isso porque a quadrilogia coronelista de Barbosa personificou nuances e momentos desse mal compreendido conceito de Sérgio Buarque de Holanda: numa síntese incipiente, o sociólogo vê o homem cordial como um sujeito característico da sociedade brasileira, formado por um caráter patriarcal que se apossa do público, capturando-o para um regimento íntimo e familista. Produzida e exibida pela Rede Manchete quando Fernando Collor de Mello – a aposta de homem da modernidade – já dava indícios de ser um farsante, Pantanal fez do homem cordial o anfitrião de uma viagem propiciada pela televisão. Trinta e dois anos depois, após uma série de reprises, tramas interrompidas e uma “novela fechada” (Um Lugar ao sol), esta bem-sucedida releitura pantaneira, posta sob o Padrão Globo de Produção, proporcionou mais do que uma escapada diária: soou como um retiro bem calculado entre a pandemia e o pandemônio. 

Parece natural que o herdeiro da dramaturgia de Barbosa seja, não as filhas Edmara e Edilene (com quem o novelista trabalhou por anos a fio), mas o neto, Bruno Luperi, que assina esta nova versão; nas sagas de Barbosa, é comum que os poderes – geralmente agrários e econômicos – sejam transmitidos entre homens, de pai para filho (no caso, de avô para neto). E se na versão original o escapismo era dado mais pelos planos longos e abertos das paisagens – uma decupagem incomum para telenovela, que acabou propondo uma ruptura do fluxo televisivo –, aqui, a mistura entre o realismo mágico e um universo rural reconciliatório parece ter se sobreposto ao estilo das imagens na condução do público (o que sugere que a incursão anterior pelo realismo mágico, O Sétimo Guardião [2018], fracassou por ser mero empilhamento de pastiches de Aguinaldo Silva).

Em Pantanal, o realismo mágico é representado por duas das três personagens mais populares da trama (a terceira terá um texto exclusivo): o patriarca Juventino (Irandhir Santos), que se transforma no Velho do Rio (Osmar Prado), e a mulher-onça Juma Marruá (Alanis Guillen). Espécie de entidade protetora do ecossistema pantaneiro, o Velho do Rio se alternava entre as formas de humano e sucuri para zelar não só pelo pantanal, mas também pelo romance (e pela virgindade) de Juma Marruá. Assim, é um personagem contraditório, que, se por um lado compreende o apego de Juma à vida simples na tapera, por outro, orienta-a ao casamento e à consequente ruptura com seu modo de viver. Juma, por sua vez, virava onça quando tinha réiva, mas, inexplicavelmente, se encantou por Jove (Jesuíta Barbosa), o mais insonso (mas estudado!) dos filhos de José Leôncio (Marcos Palmeira). Curiosamente, a popularidade de Juma nunca se estendeu ao casal; talvez porque o conflito entorno do romance não tenha sido abordado com o devido equilíbrio: apegada a uma vida modesta e rente à natureza, a visão de mundo de Juma é sempre subjugada pelo progresso civilizatório que Jove representa. Desta forma, por mais que Alanis Guillen tenha conseguido a proeza de escapar da sombra de Cristiane Oliveira, sua mulher-fera continuou no destino de ser domesticada, a ponto de mal aparecer no último capítulo. O desfecho de Pantanal ficou reservado ao patriarca e seus meninos.

Dos três filhos de José Leôncio – que durante toda a trama estimulou uma disputa entre os rebentos pela sela de prata, uma relíquia da virilidade familiar –, Jove é o herdeiro primordial, aquele que, inclusive, recebe o nome do avô. Não por acaso, é também o único gerado no matrimônio ritualizado pelo cristianismo, o que, a princípio, o põe adiante dos irmãos, o bastardo José Lucas (que, diz o sobrenome, é de Nada), e Tadeu, o enjeitado recorrente nas tramas de Barbosa. Nesse sentido, a rivalidade que o pai alimenta é uma farsa com destino selado: filho cuja educação formal se deu num lar de mulheres, a jornada de Jove é pelo aprendizado desse mundo masculino e agrário, que ele administrará em conciliação com a modernidade (a implantação da internet e dos celulares como benesses negociadas). Se Jove é fruto da maternidade abençoada pelo casamento, José Lucas, o primogênito por muito tempo incógnito, é filho do mundo, e seu caráter itinerante o conduz não só à política, mas ao alinhavo entre a vida pública e esse mundo cordial. Finalmente, Tadeu (José Loreto) é o responsável pelo que está dentro da cerca, isto é, pela fazenda-feudo, que ele recebe com as bênçãos do pai e do avô. Quando finalmente encontra o Velho do Rio, o patriarca-entidade diz que Tadeu não é filho de sangue, mas filho do amor. Trata-se do clímax do último capítulo, e se a emoção melodramática é uma evidência que transborda nos rostos em primeiríssimo plano, há algo mais profundo no pântano das palavras do avô ao netoa filiação e a herança de Tadeu se consolidam no mérito que o distingue dos outros – a capacidade de replicar o próprio pai, dos gestos às visões. Na moral beneditiana, o melhor filho é aquele que espelha e, consequentemente, conserva o próprio pai. E os pais de Benedito Ruy Barbosa são sempre homens cordiais.

Nesse sentido, o ciclo se reinicia com o mesmo título, mas sob outro país. Afinal, se a morte do homem cordial ocorre emVelho Chico às vésperas da primavera Bolsonarista, hoje, completados quase quatro anos de doença e barbárie, Pantanal reaparece não mais como um escapismo concreto, mas como um retiro virtual, instalado num mundo de homens-miragens, imperfeitos, mas, mesmo assim, mais civilizados do que os que nos governam. Se a novela da Manchete intervalava uma democracia titubeante (porque aprendia ainda a andar) a partir de um tempo-espaço que permanecia Brasil, Pantanal, hoje, soa como uma Pasárgada, uma terra de broncos humanos, aptos a dialogar antes de atirar. Um pantanal que, agora, só nos é possível pela nostalgia reconstruída e comercializada em imagens e sons, visto que somos menos merecedores do que Tadeu; para o discurso narrativo, o desequilíbrio entre progresso e conservação tem minado as conciliações cordiais, resultando neste cenário predatório onde as fibras cardíacas necrosam rapidamente. Levada ao ar no instante em que o fascismo à brasileira – previsto por Sérgio Buarque de Hollanda – se torna uma realidade, Pantanal ressuscita, entre Leôncios (véios e joves), a imagem do homem cordial (capaz até de reagregar figuras como Sérgio Reis), esperando que, um dia, ele volte a ser de carne e osso.

Ironicamente, nesse pântano de homens virtuais, havia um corpo, ou melhor, um rosto muito real. Não era José. Era Maria. Mas Maria merece um texto só seu.