por Álvaro André Zeini Cruz


Em Um Grande garoto, a relação paternal de Will (Hugh Grant) para com o Marcus (Nicholas Hoult) se completa quando o solteirão (agora inconvicto) se sacrifica para ajudar o garoto numa apresentação escolar; Will comete o que chama de suicídio social para que Marcus colha sozinho os louros da interpretação de Killing me softly. Em Aftersun, uma performance de Losing my religion tem desfecho oposto: numa das últimas noites que têm juntos num resort, Sophie (Frankie Corio) pede que Calum (Paul Mescal) a acompanhe no videokê. Irritado, Calum se recusa, e a menina segue sozinha para o palco, onde começa a apresentação num close de cortar o coração: o olhar titubeando em direção ao extracampo, à espera do pai que não vem. Reenquadrada no plano aberto, Sophie surge solitária e esguia no vazio do palco. É a cena que desencadeia um perder-se entre pai e filha que parece momentâneo, mas as lacunas no filme de Charlotte Wells acabam por indicar justamente o contrário: os poucos dias de ócio e afeto sob o sol de Turquia turística talvez sejam o que há de mais concreto nessa relação de miragens.
Envergonhado com o número de Sophie, Calum, mais tarde, diz à filha que ela poderá sempre contar com ele, mas a pista dessa mentira já fora plantada, e os lampejos de uma noite pulverizada — anos depois desses dias de sol — dão indícios de uma separação. Se o filme de Wells é feito dessa memória enevoada, enigmática, o de James Gray, também sobre pais e filhos, é concreto; da porta arrombada – seguida da surra que Paul (Banks Repeta) leva do pai e do desconcertante plano de Anne Hathaway à espera na escada – às decisões pragmáticas que resultam em mudanças palpáveis na rotina da família de classe média. Essa objetividade se alastra das conversas corriqueiras – “vou te dar um livro maravilhoso […], A arte do sucesso” – à frase mais corriqueiramente lancinante que um pai pode dizer a um filho — “eu quero que você seja muito melhor do que eu”. Em Armageddon Time, a amizade entre dois garotos — Paul, um judeu, e Johnny (Jaylin Webb), um negro — irrompe uma corrosão gradual dos valores e ideais de uma família que, a princípio, parece ter certa consciência. Mas o menor tremor em uma estabilidade conquistada entre traumas e entraves desencadeia o temor dos retrocessos individuais. Isso se adensa com a morte do avô, Rabinowitz (Anthony Hopkins), memória das perseguições passadas e, por isso, reservatório moral familiar. Sob a direção (quase literal, dado o número de cenas do personagem ao volante) de Irving (Jeremy Strong) – um pai que, de tanto temer a História, vislumbra apenas o futuro –, uma nova verdade se instaura: a vida é injusta; que ela seja com os outros.
Em Aftersun, a entrevista, com câmera VHS, que Sophie faz com esse pai incógnito (O que ele faz? Do que vive?) acerca do futuro reduplica o homem, mas não soluciona seus mistérios: ele é um vulto na tela da televisão e uma imagem interrompida no espelho. Por ironia, o plano que introduz essa cena volátil é absolutamente háptico: a blusa amarela e as meias encharcadas penduradas sob o sol na grade da sacada. É a imagem mais estável do filme de Wells; as roupas da menina (no quadro em tripé) sob a luz não desbotada desses dias com o pai. Em contrapartida, a síntese do filme de Gray está numa tríade de planos em movimento que surgem na sequência final: a família democrata, que lamenta a eleição do republicano Ronald Reagan, é a mesma que enviou o filho – para separá-lo do amigo negro – a um colégio de elite da família Trump. É nesse espaço, durante um discurso em que o diretor proclama estarem ali futuros líderes, CEOs, senadores e presidentes, que Paul dá as costas e deixa o prédio, não sem antes olhar para trás (é preciso ver para não esquecer e para que não só se vislumbre). Então, é na continuidade desse movimento que a montagem articula três planos em travelling out: o primeiro, denotativo, afasta a porta da escola de elite; o segundo, a sala de aula da escola pública, da qual Paul fora afastado, mas que afastava Johnny dia a dia, aula a aula. Por fim, o terceiro e último plano, retrocede o olhar sobre a sala de jantar, velando a mesa descompensada pela ausência do avô, pela falta moral.
Em três planos, Gray constrói a consciência de que os projetos de educação – seja em escolas para ricos ou pobres – se retroalimentam em prol dos entraves e abismos. Esse impedimento, porém, se consolida, não no espaço público, mas no privado, no doméstico. Ao final de Armageddon Time, Paul entende que para estar num mundo melhor, mais justo, terá que dar as costas para certas salas, sejam elas de aula ou de jantar (com pessoas ocupadas em nascer, ler A Arte do sucesso e morrer). No classicismo contemporâneo de James Gray, a moral é uma questão de travellings (out).