por Álvaro André Zeini Cruz

Quem já viveu no interior sabe que qualquer pequeno município que se preze tem o “louco” da cidade. E não é exatamente um pré-requisito que essas figuras apresentem distúrbios psicológicos; basta que se façam notar por alguma característica exótica. A personagem que intitula “Pacarrete” cumpre esse papel; no filme de Allan Deberton, essa senhora é uma bailarina frustrada, que lustra a dureza da alma com palavras em francês. Pacarrete cisma que quer se apresentar num evento em sua cidade, mas ninguém a leva a sério. Nem mesmo o filme.
Marcélica Catarxo dá vida à Pacarrete em composição muito singular: a voz áspera nasce numa dicção que ora rosna ou engasga as palavras, ora as canta, mas sustenta um tempo de falar antinatural. As roupas do corpo e a maquiagem do rosto também vão sentido à caricatura desta mulher nostálgica, que contrasta com os arredores ao tentar mumificar um passado de movimento e dança. Acaba mumificando a si própria: outrora bailarina de carne-e-osso, Pacarrete agora parece uma réplica de porcelana.
Essa figura inusitada não é exatamente malquista na cidade, ainda que esbraveje à toa pelas ruas. Também não desperta paixões. A verdade é que, ao longo da história, Pacarrete atrai olhares como o de Miguel (João Miguel), dono da venda com quem ela mantém um flerte brincalhão (para ele; talvez não para ela). Miguel é o tipo de sujeito simpático e relativamente prestativo, que dispõe um pouco de seu tempo e de sua paciência para ouvir os pequenos absurdos de Pacarrete. Às vezes, a recoloca no eixo. É uma relação de poucas cenas, mas em que há uma constante: o olhar condescendente que Miguel dá à Pacarrete. Um olhar que o filme adota e replica durante toda a primeira parte.
Desde o início, “Pacarrete” olha para sua protagonista com essa condescendência interessada, que sustenta certo fascínio, mas sem perder de vista que olha para “a louca da cidade”. Esse ponto de vista impede que o filme entre numa sinergia com a interpretação de Catarxo, que atua boa parte do tempo sem palco, sem suporte que sustente ou reverbere minimamente a coreografia arriscada a qual ela se propõe. Esse desalinhamento de movimentos só muda a partir de uma cena central entre ela e Zezita de Matos, um midpoint tardio que traz pinceladas trágicas muito bem-vindas ao filme.
Na maioria das vezes, histórias como esta oscilam entre dois caminhos: ou abraçam radicalmente os sonhos da sonhadora incompreendida, ou assistem a tragédia que a consome, até que as ilusões se esvaiam e a sonhadora sucumba de dentro pra fora. “Pacarrete” não passa pela primeira possibilidade, mas – antes tarde do que nunca – percebe a segunda e decide trazê-la para sua parte final. Finalmente, o filme afina sua coreografia quando confina a bailarina ao palco daquela casa-antiquário, que se concretiza como uma espécie de extensão da parte mais soturna da personagem. Então, essa bailarina de porcelana trincada despedaça, justamente numa cena que relê o fim da personagem que tornou Catarxo conhecida. Nesta hora da estrela, de novo não há quem a veja. “Pacarrete” demora a perceber que a condescendência era nada mais do que pura e simples ausência.