por Álvaro André Zeini Cruz

Em Só as partes engraçadas, Nell Scovell narra a roteirização de um episódio de Os Simpsons, no qual a escolha de um restaurante para o jantar (porque Lisa está enjoada do bolo de carne de Marge) resulta em um deadline (literalmente) de 24 horas para Homer, depois de ele comer um baiacu envenenado. Séries como Os Simpsons e Family Guy exponencializam o sitcom familiar ao nonsense, criando caminhos tortuosos entre a deflagração de um conflito e a conclusão; e o fato de serem animações, certamente, colabora para que as situações delirantes tenham coesão e verossimilhança interna. Mas e fora do resguardo da animação, seria plausível, por exemplo, o sonho da casa murada resultar numa cerca feita de carcaças de orelhão acidentalmente eletrocutadas? Segundo Pablo & Luisão, sim; em live action, a série da Globoplay prova que o sitcom familiar nonsense, no Brasil, existe e tem gostinho de causo.
O teórico Noel Carroll defende que a comédia se baseia na ideia de incongruência, que abre brecha para que a diversão surja do comparativo entre o texto e o mundo real. No livro The Sitcom, Jeremy G. Butler desdobra essa ideia na progressão de causas e efeitos, com a fricção entre esses elementos produzindo diferentes tipos de incompatibilidades (internas à narrativa ou atreladas às diferenças de pontos de vista entre espectador e personagens). A palavra sitcom abrevia, em inglês, “comédia de situação”, e cabe bem à série criada por Paulo Vieira a partir das histórias do pai, Luís (Ailton Graça), e do seu melhor amigo, Pablo (Otavio Muller). Isso porque cada episódio se desdobra de uma situação inicial (que pode ser cotidiana ou sui generis) disparada pela dupla de protagonistas: uma campanha antidrogas num programa de TV sensacionalista, a proposta de negócio envolvendo um ovo de avestruz ou a compra de um carro caindo aos pedaços são apenas algumas das circunstâncias que servem como incidente incitante. Catalisadas pelos amigos, que escolhem sempre o caminho mais improvável — evidentemente pior e mais divertido —, essas situações enredam todo o núcleo familiar, que ora contrasta a dupla protagonista, ora se deixa levar pelas maluquices (como morar em um estabelecimento comercial com banheiro químico).
Nesse sentido, é preciso destacar que a comédia costuma depender de uma recorrência dos personagens como tipos. Emprestando a terminologia de Scott Sedita em The Eight Characters of Comedy, Pablo é o tipo de personagem que “vive num mundo próprio”, mas que sempre consegue convencer o melhor amigo — e “amável perdedor” — Luisão a aderir suas ideias furadas. Transformadas em planos mirabolantes, as ideias de Pablo costumam surgir para tentar ajudar o amigo e sua família, que ele considera como a dele. É, portanto, uma dinâmica afetiva, que negocia jornadas de resistência, acolhimento e conciliação. Nesse cenário, a esposa Conceição (Dira Paes) é a terceira protagonista, já que é a variante que oscila entre a razão (que gera incongruência) e o coração (que acolhe e reconcilia), enquanto os garotos (vividos pelos ótimos João Pedro Martins e Yves Miguel) trazem duas perspectivas da infância — uma mais inocente (de Neto, o caçula), outra mais afiada (de Paulo).
É nesse microcosmo doméstico que se instala um lar tipicamente brasileiro e originalmente popular (no cenário pouco televisionado de Palmas, TO), no sentido de que conta essas histórias como causos baseados em fatos, mas codificados por uma tradição da oralidade (não à toa, Paulo Vieira se coloca como narrador), encontrando graça na inteligência do jeitinho e nos afetos afeitos aos perrengues. Não se trata da representação familiar codificada em estereótipos carinhosos, como em “A Grande Família”, tampouco do popular ridicularizado, como em “Vai que Cola” e “Zorra total”. O que Pablo & Luisão propõe são crônicas de sobrevivências, sintetizadas entre situações que culminam em pequenos milagres poéticos, como a vela do bolo que se acende em contato com a cerca elétrica desvairada, iluminando a frase-síntese “… e escolheram não ser tristes para sempre”. A aparição dos “reais” no desfecho de cada episódio, alinhava ficção e realidade, sublinhando pontos factuais, mas deixando brechas para que o público especule sobre a possibilidade dos acontecimentos não comentados.
Em um momento em que o humor escorrega entre uma ingenuidade inócua de Chapeuzinho Vermelho e um bocado de Lobos Maus (que vendem mau-caratismo como humor), Vieira consegue um equilíbrio singular e sofisticado, talvez porque reconte, porque vê e retrata de dentro, numa reconstrução do factual pelo ficcional, especialmente atenta aos emaranhados entre o familiar e o social. Faz, assim, uma sitcom de família estendida, em que os laços ultrapassam o sangue, fortalecendo-se nas faltas, nas colaborações que criam memórias comunitárias (aptas a virarem histórias). Faz também uma série boca suja, mas com ternura; para toda a família, mas com a acidez que permeia os bons almoços de domingo, de gente que se ama, mas que se tolera ora com mais, ora com menos esforço. Uma cena no segundo episódio retrata esse tom, colocando-o no jogo das incongruências: quando o padre vivido por Miguel Falabella solta dois palavrões ao telefone no meio da missa (a incongruência original), Neto pergunta à avó se pode falar palavrão na igreja. Escada, a avó responde “corno pode, fudido é que não”. Neto, então, replica, em voz alta, o palavrão proibido. O punch vem da repreensão materna, com Conceição ralhando “não pode falar palavrão na igreja, seu filho da puta”.
Entre várias participações especiais (algumas comoventes, como as de Lima Duarte, Rejane Faria e Carlos Francisco), a de Falabella é curiosa, já que o próprio esteve envolvido em três sitcoms familiares Globais, com ingredientes que constam aqui, mas em dosagens diferentes. É verdade que há um movimento entre Sai de Baixo e Pé na Cova (passando por Toma lá, dá cá), mas, em todas elas, a representação negocia, em maior ou menor grau, com estereótipos e com o popular encarado como exótico (e só Pé na Cova retratava, de fato, um universo inteiramente popular). Aliás, o episódio dessa participação traz uma das imagens mais engraçadas de toda a série: as estátuas de santos empunhando coxinhas (talvez nosso salgado mais típico e popular), ideia de Pablo e Luisão para contornarem a armadilha do padre mau-caráter e não saírem no prejuízo durante uma feira religiosa. A incongruência se infiltra da situação à célula mínima da imagem em movimento: a cerca de orelhões, o buraco no assoalho do carro, a cachorra Caca partindo num mototáxi, os meninos encostando os mamilos na cerca elétrica, Pablo recompondo “A Criação de Adão” com o Papa (com Paulo Vieira surgindo por trás do Pontífice) são apenas alguns dos planos que têm essa autonomia do riso, brincando com os contrastes e absurdos em um único quadro.
A renovação, já garantida, não surpreende: Pablo & Luisão não só desponta num cenário humorístico escasso, como se destaca graças às suas singularidades, respaldadas pelo texto, elenco e direção. Um dos humoristas mais talentosos na Globo de hoje, Paulo Vieira constrói uma carreira que parece carregar a história e o lugar de onde veio, a vivência do tal do Brasil profundo, que já se tornou um chavão meio impalpável, mas que parece transbordar de cada plano de Pablo & Luisão. Em um dos momentos em que surge no primeiro episódio, Vieira convoca ninguém menos do que a voz de Caetano Veloso para trazer credibilidade a protagonistas, segundo ele, inacreditáveis. Então, a voz de Caetano entra e apresenta:
“Pablo e Luisão estão sempre abrindo uma empresa que vai falir, construindo alguma coisa que vai cair, andando em carro que vai explodir. Eles são ambiciosos e azarados, criativos e imprudentes, pobres e esperançosos. Eles são agentes do caos. Eles são brasileiros. Pablo e Luisão”.
O texto encerra com o nome da série e dos personagens, mas Conceição surge para complementá-lo: “só fazem cagada”. “Ceição” resume em cagada a junção entre sonho, sobrevivência e jeitinho; corta o texto pretensamente poético de Caetano para infiltrar o vocábulo do povo, que não precisa de dicionário, que surge nas dificuldades e nos rompantes. Entre a poesia da voz tropicalista e a “cagada”, cria uma incongruência definitiva e divertida sobre ser brasileiro.