
por Álvaro André Zeini Cruz
Corro o risco de insistir no mesmo assunto, mas depois de “O Casamento de Connor” — estrondoso 3° episódio da derradeira temporada de Succession — é inevitável voltar à Mad Men. Isso porque o mergulho de Don Draper (Jon Hamm), o homem-esponja que cai ao encontro de imagens-espumas, se encerra sob o título “Person to person”, episódio em que ele encara as três mulheres mais importantes em sua trajetória — a filha Sally (Kiernan Shipka), a ex-esposa Betty (January Jones) e a amiga (e pupila) Peggy (Elisabeth Moss).
É pelo telefone (“a person to person call”) que Don descobre por Sally que Betty tem um câncer terminal. E é na conversa com a ex — justaposta ao telefonema pragmático com a filha — em que aparece o tipo de diálogo mais complexo que se pode ter num roteiro: aquele em que o personagem exprimi o que estava encapsulado em suas entranhas e que, até então, era a ele indizível. No caso de Don, isso emerge numa única palavra — Birdie. Trata-se do apelido que ele dispensava à Betty no tempo em que estiveram atados num casamento infeliz, mas que servia de alicerce a uma imagem. Ao ressurgir assim, sussurrado nessas duas sílabas que se espremem para sair pela goela, esse Birdie carrega a bagagem de uma vida, o peso de tudo que pode haver entre um “eu te amo” e um “me desculpe”. A palavra reconecta o casal numa compreensão profunda. Só resta à Betty responder — “I know”. Um longo silêncio de rostos crispados antecede o “I have to go” que Betty coloca para modular a cena e encaminhá-la ao final. Essa mudança de beat carrega o típico subtexto de Mad Men; o “preciso ir” rotineiro soa como a despedida definitiva, imposta a esse matrimônio de fotografias projetadas entre fumaça de cigarros (ver o episódio “The Wheel”). Fumaça nos olhos.
A morte de Logan Roy é uma elipse; sua última aparição, nos minutos iniciais do episódio, é nas escadas de seu avião particular, quando vocifera a Tom (Matthew Macfadyen) e Karolina (Dagmara Dominczyk) a promessa de mais agressividade nos negócios. Promete futuro, o que é curioso: diante dos possíveis sucessores, o magnata octogenário vislumbra (ou se obriga a vislumbrar) futuros, mas, episódios antes, sentado com um de seus seguranças, permite-se questionar ao interlocutor sobre o além da vida. A morte. Ela está a bordo para Logan Roy, que embarca olhando ao infinito e além. Predatório de futuros para si, que acabam ali.
O além o encontra nessa supressão narrativa. Não vemos o colapso da figura que tem como plot a sucessão, mas que, por três temporadas, jogou o xadrez da suspensão por não conseguir ver ou crer num futuro sem Logan Roy. A negação da morte impera como defeito, missbehavior do pior dos homens, perpetuado geneticamente, mas incipiente como história, como legado, porque há no centro dessa família midiática uma incomunicabilidade basilar. Agora, Logan está no extracampo, no máximo na margem inferior do quadro, recebendo uma massagem cardíaca vã. Enquanto isso, na festa de casamento Connor (o primogênito que jamais esteve no tabuleiro paterno), Kendall (Jeremy Strong), Roman (Kieran Culkin) e Shiv (Sarah Snook) recebem o telefonema. É Tom, que quer dar a eles a oportunidade de se despedirem. “Person to person”.
Don Draper vai às profundezas para encontrar essa humanidade expressa nos telefonemas entre silêncios e desassossegos, até culminar na verdade dita à Peggy — “Não sou o homem que você acha que sou”. Don tem a epifania de que é um dos pioneiros entre os piores homens dessa nova era de imagens (que chegam até da lua). Ama, mas não sabe o que fazer com isso (“Eu estou no meio de um monte de gente. Eu só queria ouvir sua voz”). Inábil em transpor sua humanidade para o real, esvazia-se dela em prol das imagens (processo que culmina no sorriso irônico de quem transmutará o amor em publicidade). Logan vive até estes dias em que o lucro dos investidores vem tanto das telas quanto dos foguetes. No último encontro com os filhos, diz — “I love you. But you are not serious people”. A primeira frase é um enigma; pode tanto ser uma confissão desse homem ruim quanto uma artimanha. A segunda, no entanto, é uma asserção. Kendall, Roman e Shiv são simulacros que não conseguem lidar com o fio de humanidade que os conecta ao mundo.
A conversa telefônica de Kendall e Roman é a antítese das de Don: vai e vem entre um gaguejar de frases feitas, afirmações atenuantes, repetições farsescas de “eu te amo” ou “você fez um bom trabalho”, que parecem atuar mais para um autoconvencimento do que como despedida do pai. O desespero da dupla abre a brecha: desesperam-se por que perderam o pai ou por que não conseguem transmutar os sentimentos em linguagem, e por isso, titubeiam, repetem, grunhem, silenciam? Neste primeiro instante, só o que soa genuína é a frase de Kendall — “Não consigo te perdoar” — resultado da consciência da perda antes da única prova de amor paterna reconhecível a esses filhos — a sucessão. Essa incomunicabilidade culmina com a chegada de Shiv, que entre repetidos “It is okay”, “fuck” e “I love you”, solta — “eu não sei o que fazer”. Os ruídos na mensagem não estão mais na ineficiência dos meios que estendem os homens, mas na incapacidade linguística desses emissores, que provém de uma deficiência sensível. O autor está morto; o receptor, também. Restam os monstros.
É o próprio Logan quem diz, episódios antes: seus filhos são monstros. Monstros porque desconhecem o amor como ação; para esses simulacros, o amor é um conceito que dispensa vínculo com a realidade. Nesse sentido, anseiam o amor paterno, mas esse amor conceitual ao qual tiveram acesso, reduz-se aos bilhões de dólares e à sigla CEO. Não à toa, Logan diz que os filhos deveriam ver um homem revirando lixo para que descobrissem o mundo. Não que ele se importe, mas a simples consciência de que a miséria existe, o faz de carne e osso. Para os filhos (“the kids”), o mundo é um parque de diversões, uma simulação. Herdeiros de um homem que se julga Prometeu (“aquele que vê antes”), nascem e crescem sem habilidades, tal qual os homens criados pelo irmão Epitemeu. Mas, diferente do que ocorre no mito, não há fogo do conhecimento; há, no máximo, um lampejo de LED na era do capitalismo informacional. Tampouco há deuses; eles foram substituídos por esses homens que se reproduzem em grandes corporações (e Logan quase perde a sua numa crise de infecção urinária, um dos melhores subtextos de Succession).
A etimologia de “comunicação” retoma “tornar comum, compartilhar”. Don leva sete temporadas para compartilhar por telefone aquilo que está tão entranhado que até ele desconhece. A humanidade do protagonista de Mad Men desponta nesse reconhecimento de sua incapacidade de consolidar a fumaça que o compõe, em assumir sua natureza fugidia, volátil. Talvez Don Draper seja o primeiro pior dos homens; aquele que cai em si para vender Coca-Cola. Talvez Logan Roy seja o último pior dos homens, o derradeiro colonizador; aquele que abandona uma terra tão arrasada, que é incapaz de reconhecer a mutação deixada para trás, a partir do próprio DNA. Esse não reconhecimento é mútuo: diante do avião que carrega o corpo do patriarca, Roman apanha o celular e mostra a tela aos irmãos. Um gráfico da bolsa de valores mostra a queda das ações da Waystar Royco. Sobre essa imagem, Roman conclui — “Isso é o papai”. As imagens só enxergam imagens (ainda que Roman seja o único que parta para ver o corpo do pai).
Uma coisa é certa: seja Kendall, Roman ou Shiv, a sucessão deste último pior homem caberá aos monstros. “Person to person” é um título que (ainda) faz sentido em Mad Men. Em Succession cabe melhor o título da estreia desta quarta temporada, que empresto para este texto.