O Segredo de um milhão de dólares

por Álvaro André Zeini Cruz

Imagine um jogo de Detetive (o de tabuleiro) em formato de reality show, mas, ao invés de descobrir o assassino, o desafio é desvendar qual dos jogadores tem um milhão de dólares. Como em um jogo de cartas, esse milhão é distribuído (e redistribuído) de maneira aleatória; cabe ao sorteado compreender se essa sorte veio em momento propício e blefar, seja para manter o dinheiro, seja para passá-lo adiante (para tentar recuperá-lo mais tarde).

Essa é a premissa de O Segredo de um milhão de dólaresreality da Netflix em que a sorte tem que contar com a capacidade de encenação dos jogadores. O inglês Peter Serafinowicz apresenta sob uma persona que emula Hitchcock em Hitchcock presents; o cenário, aliás, é hitchcockiano (ou agatha christiano) — uma mansão digna de Interlúdio ou Ladrão de Casaca, com toques de Scooby-doo (a prova em que os participantes têm que se esconder atrás de cabeças de animais é inspirada nessa gag típica do desenho).  As eliminações se dão durante um jantar luxuoso, numa sala de jantar austera, em que animais talhados em madeira representam os jogadores em torno de um enorme cervo de madeira. Ali, vestidos de gala, poderia-se elucubrar se foi Coronel Mostarda ou o Mordomo James com o castiçal na biblioteca, mas os competidores tentam sustentar ou insinuar novos blefes, ou identificar ações suspeitas que levem ao milionário.

Algumas mais, outras menos inspiradas, as provas episódicas se relacionam com esse imaginário das histórias de suspense; o grupo vencedor ganha uma pista sobre quem está com dinheiro, mas somente um jogador pode ouvi-la (e cabe ao contemplado com essa informação compartilhá-la ou… blefar). Todas se relacionam, de alguma forma, ou com o universo, ou com o tema: numa delas, os personagens apostam uma corrida maluca até uma geleira para servir whisky ao apresentador; noutra, precisam burlar o sabor de determinadas receitas para tentar enganar o grupo concorrente. Além das provas, há uma série de agendas esdrúxulas que, como cartas bônus (ou ônus), podem levar a vantagens individuais (e o descumprimento, a desvantagens), mas são pensadas para levantar suspeitas sobre quem tenta realizá-las (coisas do tipo “você ganha uma vantagem se convencer três pessoas a falar Justin Timberlake“). 

Em suma, é um jogo em que a regra básica é a atuação (ainda que alianças costumem se fazer a partir da verdade). Todos são convocados a traírem uns aos outros, mas as traições seguem condenáveis. O blefe é o recurso mínimo a esses atores (alguns mais amadores do que outros), mas, mesmo quando revelado tardiamente, pode custar caro — caso da personagem que abriu sua dissimulação assim que saiu da mira, e, ainda que tenha seguido o que se espera do jogo, foi moralmente castigada pelos colegas. Revelar detalhes da vida pregressa (a vida real) pode ser tão perigoso quanto erguer um personagem minucioso e não conseguir sustentá-lo. É um reality de máscaras, em que cabe aos participantes trocá-las longe dos olhares alheios (ou sob a distração dos olhares alheios). Mentir uma profissão ou o número de irmãos é o tipo de estratagema simples, mas que garante plot twists bem mais interessantes do que muitos realities que demandam quase um manual de instruções para serem vistos. A criatividade de O Segredo de um milhão de dólares é acreditar que qualquer personagem é conflituoso sob a velha premissa do Dr. House — “todo mundo mente”. O que se acrescenta aqui é que não há mentira que não possa ser revelada, ou revelar alguém.