O que ficou e o que ficará? Fotogramas memoriais de um curso de cinema

por Álvaro André Zeini Cruz

Noite dessas, saí da sala de aula pensando: o que será que vai ficar disso tudo o que foi dito hoje? O que sobreviverá desse mundo de coisas que professores e alunos falam, diariamente, em sala de aula? Quais histórias, dados, críticas, comentários conseguirão atravessar os anos, e o que seguirá em cada cabeça?

Naturalmente, esse conjunto de perguntas logo fez com que as especulações se invertessem, e que eu me colocasse como objeto delas próprias. O que restou dos tempos em que eu era aluno de cinema? (porque, do ensino básico, matemática, química e física apagaram-se quase completamente). Quais memórias — articulando ensino, ensinadores e ensinados — restam em mim e como dialogam comigo agora? Veio, então, outra percepção: foi em 2005 aquele vestibular baseado no livrinho de Bernardet; a prova cuja redação pedia para que dissertássemos sobre “Cidade dos Sonhos”, de Lynch. Foi há 20 anos.

No início de 2006, ingressei na segunda turma de Cinema e Vídeo, curso criado no ano anterior, instalado na Faculdade de Artes do Paraná, mas que, naquele momento, contava com administração e nomes próprios — CineTvPr. Na época em que tudo era mato (literalmente) e em que um fretado nos levava ao campus — instalado num antigo parque agropecuário, fora de Curitiba —, professores da casa dividiam as disciplinas com professores convidados, que iam e vinham em aulas modulares para suprir a grade de um curso que era um investimento de governo (o esquema era semelhante ao que a Unicamp adotara nos anos 1990). Tive a sorte (e o azar, porque sempre há algum azar) de estar lá nessa época, e é um pouco desse “o que ficou” (ou do que ficou visivelmente, porque há memórias mais atmosféricas, sem contornos definidos) que tento espremer nas linhas abaixo, não sem antes convidar colegas daquele tempo — que, porventura, venham a ler este texto — a compartilharem as suas próprias (pode ser por email ou comentários, aqui ou no Instagram).

A fotografia ilustrando o texto é do primeiro aniversário do curso, em agosto de 2006. Abaixo, as lembranças estão atreladas aos professores de cada disciplina, dispostos em ordem alfabética.

Alessandro Larocca / Som: Fazia comentários detalhados sobre o som de cada sala de Curitiba e indicava os melhores lugares para sentar em cada uma delas. Passava filmes do Shyamalan (quando Shyamalan já estava “em baixa”). Não tenho certeza se foi ele ou Alziro quem disse “vejam todos os filmes que vocês puderem agora, porque, depois, fica mais difícil”. Seja lá quem for, tinha razão.

Alfredo Barros / Edição: Foi a segunda disciplina de edição e as aulas eram nas ilhas. Alfredo fazia um misto de aula teórica, contação de suas experiências (principalmente como editor assistente dos filmes de Jorge Furtado) e prática. Nesse último quesito, era desses professores que sabem (e ensinam) fazer tudo em poucos cliques (ou atalhos). Conseguia ver os cortes da sala inteira, ficar de olho em todas as ilhas. Lembro de ter editado um videoclipe a partir de um material bruto trazido por Alfredo (lembrar a banda já é querer muito).

Alziro Barbosa / Direção de Fotografia: Alziro tinha um jeitão sério e dava a entender que isso vinha de sua formação, na URSS. Suas aulas valorizavam mais a composição do que tecnitudes, o que me fez deixar de achar fotografia um bicho de 7 cabeças (são só três: diafragma, obturador e ISO). Foi um dos únicos professores a aplicar uma prova (e, salvo engano, inexplicavelmente, consegui um 9,0).

Doc Comparato / Roteiro: Doc era um investidor de storylines (ficamos um bimestre inteiro sobre elas); lia rapidamente as cinco ou seis linhas e dizia se a história parava ou não de pé. Boa parte de sua matéria se baseou nesse exercício. Abominava solilóquios.

Eduardo Baggio / Teorias do cinema; Direção: Acho que foi em Teorias a primeira vez que ouvi (ou prestei a atenção) o nome de André Bazin. Basicamente, sentávamos em círculo e discutíamos o texto do dia (mas não me lembro se a disposição era sempre essa). Era quase uma aula de pós, só que com o Baggio, calmamente, explicando e traduzindo as coisas a nós, meros mortais graduandos. A disciplina de Direção se mistura um pouco com outras, porque tivemos uma overdose de documentário, mas lembro de ouvir bastante sobre “Amadores do futebol” (filme no qual Baggio trabalhava na época). Também que gravamos um clipe, que tinha como referência a capa das cabeças decepadas, do “Secos e Molhados”. Baggio acompanhou o set em locação; depois, seguimos em bando para uma sorveteria, numa tarde curitibana quente.

Emiliano Ribeiro / Edição: soltou todo o material bruto de “O Último Páreo” (seu último filme) para podermos montar um material mais longo; ficou mais a experiência do que o filme. Na época, contava histórias de “Gatão de meia-idade”, no qual trabalhara recentemente. Como era um editor de moviola, contava com um assistente na operação das máquinas (e, vira e mexe, tinham opiniões divergentes sobre nossos cortes). 

Evaldo Mocarzel / Fundamentos de Direção; Documentarismo: Citava as notas do Bresson e gostava da palavra “aforismas”. A cada aula, mostrava “um dos cinco melhores filmes da história do cinema” (ao final da disciplina, acho que já somavam cinco dezenas). Lembro de um, em especial: “M – O Vampiro de Dusseldorf”. Na matéria de documentário, era Bill Nichols na veia (o que, para mim, foi bastante útil para ingressar na pós-graduação).

Fabio Uchoa / Cinema underground: Uma disciplina/professor que apresenta Jonas Mekas e Stan Brakhage já fez o bastante. No mais, lembro de Fábio (com quem trombo em eventos) como uma figura divertida, principalmente quando se permitia divagar nas análises (algo com que simpatizo, provavelmente porque também o faça).

Felipe Lacerda / Edição: Não tínhamos ilhas em Edição I, então Felipe fez uma disciplina teórica: passava referências e analisava os cortes. Logo no início, propôs um exercício de montagem a partir de tiras de quadrinhos. Mostrou em sala “JFK” e “Um Convidado bem trapalhão”; esse último, um filme que ficou para toda a vida. Falava bastante da experiência com “Ônibus 174”. No primeiro dia de aula, caiu da cadeira e se levantou num pulo; um causo ilustrativo do jeitão meio elétrico que tinha como professor.

Fernando Severo / Direção: Fizemos um verdadeiro combo audiovisual nessa última disciplina de direção: um clipe, um curta e uma sitcom. Severo costumava acompanhar os sets, mas era do tipo “deixe as crianças se divertirem e errarem”. Depois, comentava a gravação (e os erros) em sala. Nos mostrou “Pink Flamingos”.

Francisco Ramalho Jr. / Produção: Começou a disciplina pedindo (nas férias) a leitura de “O Destino bate a sua porta”, que serviu para um exercício de adaptação. No decorrer do semestre, cobrava que víssemos sua lista de filmes (que guardo até hoje), projetados semanalmente no auditório da faculdade. Lembro da história do policial rodoviário em L.A. que, no meio da abordagem, entregou um roteiro para ele e Babenco. Professor exigente, ensinava que a produção é tão criativa quanto qualquer outra área. Recentemente, vi seu “Anuska, manequim e mulher”.

Gil Baroni: ensinava que além de bem escrito, um projeto precisa ser bonito. Por isso, batia na tecla da parceria com designers.

Ítala Nandi / Laboratório de Interpretação: Ensinava a decupar o roteiro segundo a intenção dos personagens, falava de antropofagia e de “O Homem do Pau-Brasil”. Pronunciava a expressão “aqueles putox” num típico carioquês. Certa vez, fez um exercício em que interpretou pequenos monólogos escritos por nós, alunos. Participou da vaca-atolada do Adelmar (nosso colega cozinheiro), evento que foi a inauguração particular do campus para nossa turma (a primeira de 2006). Foi coordenadora do curso.

Janaína Louzada / Estética da Arte: São poucas as aulas optativas que te fazem persistir em estar na sala às 7 da manhã, às segundas-feiras. Esta pode se gabar disso. (lembro de um debate curioso sobre os shopping centers como espaços substitutos das praças, algo que, hoje, parece bem datado).

Joel Pizzini / Documentarismo: fazia um bom contraponto ao documentarismo mais social trazido pelo Mocarzel. Lembro de ouvir muito sobre Glauber (obviamente), e de “Dormente”, filme do próprio Pizzini que melhor ficou na memória.

José Carlos Avellar e Marília Franco / Seminários Temáticos – Cinema Latino-americano: os dois compartilharam uma disciplina optativa sobre cinema da América Latina. De Avellar lembro mais da figura séria, mas simpática, sempre de camisa de manga longa e calça social (ah, e que tenho um livro dele na estante que urge ser lido). Marília falava bastante de “Tire dié” e contava muitas histórias da época em que viveu em Cuba (anos depois, ela contribui muito em minha banca de mestrado, e presenciou o mico que foi minha entrevista numa candidatura de doutorado).

José Dias / Tópicos da História da Arte: Falava um bocado de expressionismo alemão. Gostava de levar as aulas a outros espaços do campus, que ficava num antigo parque de exposições agropecuárias. Lembro, especificamente, de uma aula sobre um palco de shows desativado.

Laila Tarran / Fundamentos da linguagem visual: professora e disciplina não eram do cinema; puxei a matéria como eletiva do curso de Artes Visuais. Tinha a vibe “professora de educação artística”, só que para gente grande, em estudos avançados. Com cartolina, guache e nenhum talento manual, aprendi um bocado sobre composição e equilíbrio visual.

Lina Chamie / Direção: Não foi professora efetiva da minha turma, mas suas aulas eram famosas e muitos de nós as frequentamos como ouvintes. Recalibrou minha visão sobre “Elefante” (do Gus Van Sant) e me fez prestar atenção no som como elemento da direção. Lembro especialmente da aula sobre diretores da realidade e da imagem, distinção baziniana que Lina também aplicou ao compor banca de nossos filmes de TCC.

Lúcio Kodato / Direção de Fotografia: Mostrava trabalhos próprios em diferentes áreas do audiovisual, comentando cada um; lembro, em especial, da abertura da minissérie “Amazônia” (curiosamente, há uns anos, Kodato me presenteou com seu livro de fotos da Amazônia). Dava uma aula de fotografia avançada, e minha cognição não-fotográfica parava no funcionamento de termos como “stops” ou “CCD”. Em mais de uma ocasião, nos acompanhou no chope pós-aula, quase sempre em bares baratos e duvidosos. A vez em que se arriscou a pegar uma carona comigo rendeu a Kodato um texto só para ele (está pelos arquivos da Pós-créditos).

Luiz Carlos Oliveira Jr. / Crítica: Não preciso dizer que era uma das aulas favoritas deste crítico (muito embora fosse comum sair sentindo-me meio burro, sobretudo numa aula específica que veio cheia de Sartre). Já tinha Luiz Carlos (a relação professor-aluno me impede de chamá-lo de Jr.) como professor antes que isso se efetivasse, pois era um leitor assíduo da Contracampo, onde ele escrevia. Foi por conta dele que cheguei a filmes formadores, como “O Enigma de outro mundo”, “Dublê de corpo” e “Rápida e mortal”. Fazia os mais elegantes usos da palavra “quiçá”.

Maria Augusta Ramos / Direção: Vestia o arquétipo da mentora exigente, típica desses filmes de aprendizado/superação com suor e lágrimas. Disse que o primeiro corte do meu documentário tinha uma única boa cena, que o plano rente a um escorredor de pratos era horrível e que eu deveria voltar ao set e filmar mais (tinha razão). Quando nos reencontramos, anos depois, me perguntou se a experiência tinha sido traumática e eu disse que sim, mas que ensinou um bocado. Gostava de passar Haneke, mas sou especialmente grato pela introdução a Ozu. “Palhaços”, meu primeiro curta, nasceu nessa disciplina. Me arrependo de, por pura birra, não ter feito sua optativa de cinema de autor.

Pedro Camargo / Linguagem Cinematográfica: Falava muito de cinema e tarô, não necessariamente nessa ordem.

Pedro Plaza / Linguagem Cinematográfica: Foi o pé-de-coelho-abre-alas da sorte que tive com orientadores ao longo dos estudos. Pedro é um desses eruditos que te fazem acreditar que você também pode ser um (e que também não é preciso ficar performando erudição). Era um orientador de TCC presente, bom leitor e bom ouvinte. Fui seu aluno por acaso: peguei uma DP por falta e tive que refazer a disciplina de Linguagem. Por sorte, porque assim pude assistir à análise formidável que fazia de “Central do Brasil”.

Reynaldo Boury / Direção: Contava histórias de bastidores das novelas (exibiu o making of de Malhação na época da academia), mas falava também de séries (lembro de comentar sobre Grey’s Anatomy, que vejo desde aquela época). Nos levou aos estúdios da TV Educativa para que pudéssemos exercitar o multi-câmera; me puxou a orelha quando fiz a marcação de um ator atrás do sofá (“o público quer ver o ator inteiro, não pela metade”), mas achou boa a cena que levei de The O.C. Talvez porque estivesse em Curitiba, se vestia como o personagem de Elias Gleizer em “Sonho meu”, novela a qual dirigiu. Quando apontava no campus, um amigo fazia graça, cantarolando “O meu Boury” (livre adaptação de “O meu guri”, de Chico Buarque).

Solange Stecz / Roteiro: Solange deu a última das disciplinas de roteiro, fazendo uma espécie de síntese das anteriores, mas avançando a outros formatos. Era boa ouvinte e comentarista de ideias, e foi na disciplina dela que surgiu o roteiro de “Memórias do meu tio”.

Walter Lima Jr. / Direção de Atores: As aulas aconteciam no auditório, misturando turmas de Cinema e Artes Cênicas (nesses dias, o ônibus que nos levava ao campus ia especialmente lotado). Fazíamos exercícios em conjunto, mas o melhor era a vibe “vovô contador de histórias”, que Walter Lima construía, sentando-se sobre o palco ou à beira dele para nos contar suas experiências, sem nenhuma pressa. Falou um bocado de “A Ostra e o vento” e de “Os Desafinados”, filme que, na época, lutava para lançar. Num exercício, me pôs para atuar e elogiou um suspiro que soltei em meio à cena. Na última aula, nos pôs em círculo na área externa e fez questão de ouvir os comentários de cada um de nós sobre a disciplina. 

Wilson Rocha / Roteiro: Ensinava escrever roteiro à moda antiga, já decupando plano a plano (um curta ficava com mais de 40 páginas!). Contava histórias do “Sítio do Pica-pau Amarelo”.