Por Felipe Cruz
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
(Drummond)
Mas o tédio, claro, é tão pessoal.
(Duras)
Então, tu gostou tanto assim desse filme?
(Sânia)
Ana Cristina Cesar diz da adolescência que “é sempre mais difícil/ancorar navios no espaço”. Inegavelmente me ancorei primeiro em Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola. Doze anos atrás assistir a um filme, mesmo os mais amados, era uma espécie de ginástica: ou eu tinha que ir mais rápido do que gostaria (Quentin Tarantino, Woody Allen) ou tinha que frear alguma ansiedade (Ingmar Bergman, Stanley Kubrick); mas Sofia Coppola parecia expressar o ritmo de toda uma adolescência fora de lugar e constrangida.
Foi um espelho.
E uma porta.
Em ondas, as camadas daquela semana em Tóquio quebravam-se à beira dos meus olhos. Era um novo horizonte.
***
Lento fade-in: uma mulher deitada na cama, dream pop ao fundo, as pernas roçando umas nas outras, longe a voz de Kevin Shields canta “free to learn…”: lento fade-out.
Lento fade-in: um homem acorda num táxi, Tóquio acende, vocais em suspiro derramam “Death in Vegas”, os letreiros de neon avisam que ele não está em casa.
O ritmo em que submergimos desde o começo de Encontros e Desencontros nos induz a escutar. Como quem acorda no meio da madrugada pois ouviu um barulho na cozinha, em simultâneos estados de atenção e sonolência a câmera flutua em tropeços, sempre alerta. Aguçada, quieta, captura os mínimos registros de uma relação dada entre sussurros para não acordar os outros – para Bob e Charlotte é essencial não acordar os outros.
Repetidas vezes Coppola falou do efeito que procurava em cada sequência de seu 2º filme: o de um instantâneo (o snapshot) – a foto normalmente feita em movimento e de enquadramento pouco rígido. É esse incessante deslocamento enquanto registro o motor do filme, pois sabemos que só se distrai e observa o caminho quem não sabe para onde está indo: Bob e Charlotte andam em círculos juntos, e nunca antes haviam ido tão longe.
Surpreende o tanto que cada elemento parece irredutível em sua contribuição para um filme tão rigoroso em sua fluidez: seja ao decidir não filmar em digital por querer o distanciamento memorialístico e místico da película ou ao, paradoxalmente, optar pela película que permitisse a maior mobilidade possível para que raramente fosse necessário iluminar uma cena, Sofia Coppola quis, com intensidade e obstinação, apontar e disparar sua câmera. Muito mais Vivian Maier que Cartier-Bresson, muito mais Marguerite Duras que James Joyce, Sofia se deu tempo para reconhecer seu filme, tateá-lo enquanto o fazia – e com desprendimento deixou os caminhos percorridos em sua busca gravados em cada fotograma; também por isso Encontros e Desencontros é a alegria de fazer cinegrafia, de mover-se em busca do movimento. Somos lembrados de que o cinema acontece porque algo se move: lentes, diretores, câmeras, rebatedores. Em opacidade de elementos, refutando uma certa higienização que engessaria seus próximos trabalhos (como Maria Antonieta e The bling ring), Sofia Coppola não ofusca nada com a maquiagem usual de uma pós-produção “profissional”, e justamente por isso tudo brilha – dos olhos de Bill Murray e Scarlett Johansson, às luzes da cidade que emolduram a desajeitada história de amor que os atores encenam com tanta delicadeza e desencanto.
A dimensão mais ampla é, no entanto, o redimensionamento do mínimo. Perguntam sobre a origem do roteiro, Sofia responde que eram rabiscos incompreensíveis; elogiam a trilha sonora, ela diz que só queria uma mixtape*; enaltecem sua contundência ao expressar a incomunicabilidade humana, para a diretora são “apenas assuntos pessoais”.
Encontros e Desencontros, às vezes, lembra um acidente – parecem tantas as coisas à revelia das quais ele persiste. No entanto, é preciso dizer que o mundo como o percebo não existiria sem Encontros e Desencontros – e quando ao som de Just like honey, durante a despedida que há 12 anos não termina, relembro que este filme só aconteceu porque todos os envolvidos distraíram-se com o caminho e transcenderam o lugar aonde deveriam chegar (A história do cinema? O reconhecimento de entendidos?), me alegro com as lágrimas tão familiares que derramo – este ímpeto, como é comovente, de tentar preservar aquilo que não pode permanecer.
Felipe Cruz
*fita cassete com músicas escolhidas, gravadas e organizadas por alguém que nos conhece bem.