O Melhor está por vir

por Álvaro André Zeini Cruz

Há filmes que nos amedrontam quando tentamos aproximá-los da escrita. Filmes cuja mera existência pós-créditos torna-se uma assombração, que paira por nós para postergar esse (re)encontro interno entre filme e alma, isso a que chamamos de olhar. Apesar do título otimista, O melhor está por vir é um desses filmes.

Por onde começar a escrever sobre o mais recente Nanni Moretti?

Talvez deva começar pelo filme dentro do filme, esse filme circense-comunista — “a-sombra-ação” — que rasga Stálin e mantém Lenin, que aspira culminar num suicídio, mas é sentido (antes de ser visto) como um filme de amor. Que traz para o set, o picadeiro, esse palco solar na luz e na forma, onde a arte se faz espetáculo popular em 360°.

Talvez deva começar por outra circularidade; a rotação que Giovanni inicia quando aciona uma cena interna (Filme? Memória? Imaginação?), que, não só roda, como dispara translações contagiadas, disformes, contagiantes. Outra órbita é questionada em cena: “por que estamos andando em círculos?”, pergunta o personagem de Mathieu Almaric, sobre um patinete elétrico. Giovanni/Moretti responde — “Em cada filme que faço, tenho que filmar pelo menos uma cena no distrito de Mazzini”. Ou seja, o giro é marca, diz o próprio autor. Em O Quarto do filho o giro era abismal, cíclico, helicoidal, preso à uniformidade do luto, que só se atenua à beira da praia, quando cada qual segue seu rumo. No fim.

Talvez deva começar pelo fato de que Giovanni/Moretti não dirige — sozinho, de costas — a Vespa, mas um patinete elétrico, lado a lado com Almeric, ambos de frente à câmera. Ou pelos bancos de carona, onde Giovanni dança como em Aprile, de onde canta para poder dirigir (não o carro, o filme). A música contagia, antes, a motorista, depois, extravasa para a cena seguinte. O coro repete “sono solo parole”. Solo?! Ora, língua-mãe, o latim era tema central de Mia Madre! A palavra sublinha sua centralidade cinematográfica no refrão, unindo o elenco e a equipe desse filme desobediente, que ganha vida própria quando o cineasta quer o clímax da morte. 

Talvez deva começar pelo pitching, discurso mínimo — geralmente, milimétrico, ensaiado —, que surge da sinceridade de Giovanni (“na vida, ninguém realmente muda”) para ser retribuído na ordem dos números: 190 (países), 2 (minutos). Aos players, interessam ou a matemática ou o palavrório formulaico — “Neste filme está faltando um momento de what the fuck?!” (sorte de Giovanni que os sul-coreanos são bons de matemática e têm um pouco mais de coração).

Talvez deva começar por essa dúvida que paira sobre o próprio filme, em que os atores vão se contaminando de uma convicção indomada, indirigível, ao passo que o diretor, que não sabe sobre o seu, ensina para o filme do outro. Falo da divertida digressão a la Woody Allen/Annie Hall, quando Giovanni/Moretti interrompe o filme produzido pela (quase) ex-esposa para convencer a equipe (que não é a dele) de algo que deveria ser basilar — não se capta a violência de qualquer forma, nem a qualquer custo (não se filma a violência por um what the fuck?!).

Talvez deva começar por esse casamento em crise, em que comunicação existe, mas é sempre sobre os arredores; em que direção e produção não são mais um encontro de espíritos ao piano.

Talvez nem devesse começar — mas já comecei e prometo que estou quase acabando —, porque o cinema de Moretti, cada vez mais “simples e errante”, parece estar tal qual Giovanni, que se desprega da órbita, cheio de dúvidas sobre como dirigir ou como seguir. O único aprendizado é que a corda, a forca, é incabível, até mesmo na esfera da ficção. Resta caminhar, em marcha, adiante. Com os seus. Com alegria.

(Não deveria ter começado, pois O melhor está por vir prova uma das verdades da crítica: o texto sempre está atrás do filme. No caso de Moretti, fazer uma crítica à altura é utopia, é marcha. Quem sabe outro dia, um outro texto, melhor, esteja por vir.)