por Álvaro André Zeini Cruz
Ao preparar uma aula de cinema brasileiro, voltei a uma passagem de Cinema e identidade nacional em que o autor Mauricio R. Gonçalves narra aproximação da elite da década de 1950 com o campo da cultura. Tratava-se – segundo Gonçalves e os autores com quem ele dialoga – de uma tentativa de sanar um complexo de subdesenvolvimento por parte dessa elite, que queria “sentir-se plenamente realizada” como “classe dominante”. Não pude deixar de imaginar o que pensaria essa elite de outrora – que instrumentalizava a cultura como legitimação classicista – se pudesse assistir seus herdeiros nas telas de TV, que, naquele dia, noticiavam as bravatas golpistas de empresários contra as eleições e a democracia.
Foram dias de nebulosidade e especulações acerca do caso até ontem, quando o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, suspendeu o sigilo da investigação. Hoje, ao comentar essa divulgação no CBN em Foco, o jornalista Carlos Andreazza escolheu escantear o que há de mais novo na notícia – a possível relação de um dos empresários com as manifestações golpistas no 7 de setembro passado – para explicar ao ouvinte que “os ricos podem ser estúpidos”. Depois, se retratou: disse que defendia o direito deles – os ricos – serem estúpidos. Uma defesa tão inusitada quanto desnecessária: se há 70 anos a elite econômica conseguia ser ou disfarçar-se de elite cultural, hoje a estupidez da elite é facilmente auditável, seja por suas personas públicas, seja pelo terrorismo moral que espalha via internet.
Não acompanho bem a carreira de Andreazza a ponto de reconhecê-lo como parte do jornalismo lavajatista que chocou o ovo e se converteu em garantista. Mas a última edição do podcast de Malu Gaspar (um desses casos) envelheceu mal: por mais que tenha sido divertido ouvir o malabarismo retórico de Malu acerca de abusos do judiciário, tudo indica que Marcelo Adnet e Bernardo Mello Franco tinham razão em ponderar que a conjuntura era ainda incipiente para o jornalismo meter a colher. Mais enfática do que Gaspar foi uma colunista do UOL que disse que transformar ministro em Batman não salvaria a democracia. Pode até ser que a jornalista seja da turma dos escaldados com o judiciário, mas é mais provável que essa defesa das liberdades democráticas parta da menção ao seu próprio nome na lista do chamado “gabinete do ódio” (citação que, segundo os twitteiros, atrapalhou o rebranding da profissional).
Mas o propósito desta crônica não é invadir o campo do direito (até por falta de competência); tampouco avançar para além de uma costura jornalística desses dias pré-eleitorais, que, por sua vez, são pré-Copa do mundo. Falando nisso, hoje o Estúdio I apresentou a história de um menininho que, sem dinheiro para comprar o álbum da Copa, decidiu ele mesmo desenhá-lo. “Personalizado”, repetia o repórter empolgado com a inclusão do rei Pelé, desenhado e colorido a lápis. Coube à Andréia Saddi trazer, do estúdio, o contraditório, lembrar a tragédia de um país que empobrece de comida e de tudo mais; um país em que completar o álbum da Copa – como apontou a reportagem – custa mais de R$ 500,00.
Mas o verdadeiro valor está na criatividade, disse um outro jornalista, retomando o tom da reportagem. A imaginação aparece como “jeitinho” para driblar a falta e há de ser recompensada no futuro: se persistir e merecer, é possível que esse garoto consiga oportunidades como as das crianças que crescem com direito ao lúdico. A romantização do caderninho desenhado leva a crer que, se o menino ralar com criatividade, pode-se vislumbrar ali o futuro dono uma startup. “Semana que vem, Huck – o candidato que foi sem nunca ter sido – estará na porta dessa casa”, pensei. Mas Saddi foi mais rápida: contou sobre as doações oferecidas à família do garoto e os contatos de jogadores de futebol.
Desse zapear jornalístico entre rádio e televisão, poderia sair a manchete: “estúpidos, mas caridosos”. Tomaram para si as camisas, os álbuns, as bolas e os campos, a ponto de obrigarem o Jornal Nacional – vejam só! – a fazer uma série educativa sobre a democracia e a Constituição Cidadã, com direito a imagens da ditadura (“ditabranda” na Folha de São Paulo). Estúpidos, talvez porque formação seja produto fora de moda no capitalismo informacional, que expõe num mesmo balcão o jornalismo sério e as Fake News (mas que são combatidas em campanhas publicitárias). Nesse self-service do conteúdo ao gosto do freguês, uma jornalista do anti-jornalismo da Jovem Pan interrompe a discussão dos colegas para informar com pesar: o MST é mesmo o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Mas o fato checado é logo recolocado em suspeições vazias: será?
Um dos papeis do jornalismo, me parece, é mediar a complexidade do mundo sentido a um entendimento mais amplo; uma função formadora, pedagógica, de emancipação cidadã gradual e contínua. Entretanto, um jornalista defendeu o direito à estupidez, dias depois de uma colega de profissão (e de podcast) ser atacada pela personificação-mor dessa elite que se desfez do verniz, que não mais finge costume, civilidade. Uma elite que, com dificuldade de sustentar até mesmo a ilusão da nossa modernidade sempre incompleta, resolveu voltar à mais primordial das polarizações – ocupante e ocupado.
Enquanto isso, Bolsonaro postergou a execução das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, direcionadas à cultura. Não ocorrerão, portanto, neste 2022, que, além de eleição e Copa, marca ainda os cem anos de Semana de Arte Moderna. É provável que Oswald de Andrade, se chegasse por agora, desanimasse de propor o manifesto antropofágico; não há antropofagia possível numa terra em que até mesmo a cultura ocupante é um pastiche, uma estátua de fibra de vidro que abençoa o império romano do poliéster barato e das bandeiras verde-amarelas que flamulam o mau-agouro dessa estupidez defendida e orgulhosa. Contudo, se ligasse na Globo News, Oswald certamente teria o gostinho de ser chamado, não de “telespectador”, mas de “assinante”. Uma questão de classe, como sempre.