
por Álvaro André Zeini Cruz
Este texto é mais sobre a entrevista que Pedro Bial fez com o pré-candidato à Presidência da República Sergio Moro do que sobre a entrevista que Sergio Moro concedeu a Bial. Sim, é um caso em que a ordem dos fatores altera, se não o produto, ao menos o recorte que se faz dele. Isto é, ainda que seja impossível contornar por completo o discurso do convidado numa análise que pressupõe a linguagem como ato interacional, o principal interesse aqui é a manobra discursiva do apresentador na estruturação de uma conversa em que as réplicas soam como resultados bem calculados e, por isso, laterais. Até porque este texto não é um relatório de polígrafo.
Exibida em 17 de novembro no talk show Conversa com Bial, a entrevista com o ex-juiz da Lava Jato e ex-Ministro da Justiça do governo Bolsonaro durou 33 minutos. Na introdução, Pedro Bial logo lembrou que aquela era mais uma edição de uma série de entrevistas com pré-candidatos às eleições de 2022, e fez questão de dizer que o ex-presidente Lula está entre os convidados (contrariando uma ironia recente do apresentador sobre Lula). Bial, então, leu o texto que apresentava o interlocutor da noite como “um homem público que provoca tantas paixões a favor e contra”. Essa referência inicial ao convidado surge com menos de um minuto do programa, mas o jogo de palavras dá o tom dos trinta minutos seguintes – paixões a favor e contra. Bastaria uma bisbilhotada num dicionário de antônimos para que se encontrassem sínteses que mantivessem o sentido das tais paixões contra: ódio, aversão, desprezo são algumas possibilidades, mas inconvenientes de se associar a um candidato que desponta como o único da tal terceira via a se aproximar de uma dezena percentual nas pesquisas. Bial preferiu apostar numa ambiguidade que atenua o valor do termo paixão. Desta forma, não só torna menos espessa a atmosfera de sentimentos e ressentimentos ao redor de Sergio Moro como o realoca para o pragmatismo do a favor ou contra, que deve dominar as eleições do ano que vem.
Uma contradição parcial dessa primeira baliza discursiva faz parte das negociações de credibilidade da entrevista; se Bial contorna a palavra ódio, não hesita em perguntar: “dá para ser herói e vilão da mesma história?”. Ele mesmo responde citando dois mitos – um grego (que relembra sua posição de apresentador culto) e um de massa. O mito de Hércules, que mata a família, causa certo constrangimento a Moro (que diz que a esposa está “vivinha”), mas aqui é o mito massivo que importa: é a Darth Vader que Bial apela, lembrando que o vilão de Star Wars “ganhou redenção de herói ao matar seu chefe, o Imperador Palpatine”. A vilania é citada, mas logo atenuada. Em compensação, a analogia que delineia um personagem arquetípico é posta sem sutileza: tem-se ali um homem disposto ao sacrifício heroico pela redenção. Cabe aos 944 mil telespectadores registrados pelo Ibope – festejados pelo site “O Antagonista” na matéria “Sergio Moro amplia a audiência do Conversa com Bial” – decidirem se dão a esse pretenso herói uma nova oportunidade narrativa.
Bial argumenta a favor: reelabora o heroísmo de outrora como uma atribuição acidental, “um avatar do desejo de justiça dos brasileiros […], ungido a herói nacional”. Ou seja, o ex-juiz fora levado pelas circunstâncias, sempre na melhor das intenções. Agora, a história é outra. Quando diz que a voz de Moro “está diferente” graças às sessões de fono, o jornalista deixa implícito que esse é um herói que agora se prepara, fisicamente e emocionalmente, inclusive (e Moro retribui “envaidecido” o elogio de “um expert, um grande comunicador”). As perguntas de Bial têm a astúcia de não parecerem evasivas, mas dificilmente fecham fatos; resumem-se aos “o que mudou?”, “você se arrepende?”. Propiciam, assim, uma escalada de mea-culpa (sobretudo pelo tempo de Moro no governo Bolsonaro). É numa dessas réplicas abertíssimas que Moro diz que estava confortável no exterior, mas que foi sensibilizado a voltar ao país quando um jovem perguntou se ele tinha abandonado o Brasil. Ao dizer que isso foi como um tiro em seu coração, Moro encarna um subtipo de herói bastante específico e dos mais empáticos: o mártir, aquele que se sacrifica em prol de uma causa maior.
A questão é que a máscara arquetípica pode ser propensa à empatia, mas não a garante a qualquer um que tenta vesti-la. Ciente disso, Bial arrisca um movimento: ao perguntar sobre as leituras de Sérgio Moro, deixa implícita a piada com uma conhecida gafe do convidado, que, noutra ocasião, disse ser leitor de biografias, mas foi incapaz de citar títulos do gênero. Desta vez, Moro se saiu melhor; mais do que isso, aproveitou o movimento do apresentador como escada para mostrar que sabe rir de si mesmo, o que demonstra uma conversa preparada nos mínimos detalhes para lapidar essa nova persona de candidato.
Não significa que a entrevista foi isenta de erros por parte do apresentador. O maior, sem dúvida, foi uma espécie de ato-falho: Bial titubeava entre atribuir ou não a Moro o título de “doutor”, como se estivesse indeciso se soaria como credibilidade ou elitismo. Culpa da entrevista remota; estivessem no estúdio, uma gravata frouxa e um pouco de vaselina na cara resolveriam a questão.
Se a Conversa com Bial foi constrangedora, não se poder acusá-la de ter sido desonesta; pelo contrário, o constrangimento veio justamente de uma estratégia midiática descarada (que deve contagiar toda a mídia não-bolsonarista) que se agarra a Sergio Moro na falta de um nome mais competitivo dentro da tal terceira via. O próprio Bial dá a síntese dessa estratégia quando cita Joseph Campbell, sublinhando o título O Herói de mil faces (a partir de um texto de TP mal disfarçado). A estratégia midiática em torno de Moro é essa: se a primeira face foi uma decepção, nosso herói tem outras 999 para mostrar. Resta saber quantas vezes suportaremos ver essa adaptação de O Herói de mil faces televisionada por Pedro Bial e companhia. Melhor era quando Bial dizia coisas com “no filtro solar, acredite”.