por Álvaro André Zeini Cruz

Em “O Fim da viagem, o começo de tudo”, a repórter japonesa Yoko (Atsuko Maeda) e sua equipe televisiva percorrem o Uzbequistão produzindo um documentário. A certa altura, o intérprete Temur (Adiz Rajabov) tenta convencê-los a gravar no teatro Navoi, e confessa que o lugar o levara ao estudo do japonês e, consequentemente, ao encontro da profissão. Temur explica: as paredes do teatro foram esculpidas por soldados japoneses, aprisionados na 2ª Guerra. Completa que, ao conhecer essa história, passou não só a admirar, mas a querer retribuir aos homens, que, mesmo presos, tornaram aquelas paredes obras de arte.
Quando essa cena ocorre, outra já havia se passado no Navoi: nela, Yoko adentra justamente as antessalas adornadas, descritas por Temur, até chegar ao auditório, onde a mise-en-scène de Kiyoshi Kurosawa opera a mudança do registro do físico para o metafísico: a transformação da luz e o surgimento de uma orquestra no fosso são os elementos que cercam a fantasmagoria que sobe ao palco – a própria Yoko, não em corpo, mas em espírito. Sobre o palco, ela começa a cantar nada menos do que “Hino ao amor”.
A música só se concluirá adiante, já que as amarras do mundo físico se apresentam; um guarda interrompe a espécie de transe em que se encontrava o corpo de Yoko, reaprisionando aquela lasca de alma que cantava no palco. Pois este é um filme sobre confinamento e liberdade, mas, mais do que isso, sobre como corpo e espírito lidam com esses dois estados. Fascinada pela construção – que guarda uma das Histórias do seu povo e, consequentemente, dela própria –, Yoko, se desenlaça do martírio que é para ela aquela profissão, aquela viagem, aquela solidão, aquela vida. Ela que antes havia se compadecido com uma cabra presa, fazendo questão de soltar aquele corpo, precisa aprender a soltar o espírito. E num momento em que não sabia sobre as mãos que construíram aquele espaço, vive uma espécie e reconhecimento dos encarcerados, como se seu aprisionamento figurativo pressentisse a detenção literal dos construtores da obra, como se cada ornamento fosse cicatriz de uma libertação e, ao mesmo tempo, constituição de uma nova prisão: o fragmento do espírito que se liberta no ato da arte e se confina de novo na própria obra de arte.
A partir daí começa uma jornada de reconstituição dos sentidos: da audição ao olhar (a câmera dada a ela), depois, à fala (só se pode cantar “Hino ao amor” quando o amor flui pela voz e não por mensagens de texto). Então, de olhos, ouvidos e coração abertos, ela reencontra a cabra, corpo e espírito libertos, nas andanças pelas montanhas; se o espaço do teatro reverbera as almas, mas não deixa de ser um decalque físico delas, é ali, entre as montanhas que desafiam o limiar entre o céu e a Terra, entre o físico e o metafísico, que ela concluirá “Hino ao amor”, numa cena que, só de descrever, dá vontade de chorar. A câmera paira entre o céu e a Terra, mas reencontra o rosto de Yoko num close-up: não mais o rosto do corpo, mas o rosto do espírito. O cinema de Kiyoshi Kurosawa é conhecido por borrar as fronteiras do mundo corpóreo para que os espíritos que o cercam o invadam. Aqui não se trata do que está ao redor, mas do que está dentro. O corpo é trampolim para esse mergulho profundo na alma.
Texto originalmente publicado no Letterbox. Filme em cartaz no MUBI.