O Boi e a Câmera

por Álvaro André Zeini Cruz

Pai Francisco mata o Boi para dar a língua à Mãe Catirina, que tem desejos de gravidez. Mas o Boi tinha dono, e o coronel, especial estima pelo animal morto. Inicia-se, por isso, uma caçada ao casal de escravizados, que, com a ajuda de um pajé, consegue ressuscitar o bicho. Exultante pela reparação plena, o fazendeiro promove um festejo, e é justamente essa trama de crise e conciliação que é reencenada — entre variações — nas brincadeiras do Bumba.

Bumba Meu Boi. A farsa do renascimento pari a novela do homem que finca o facão na mata e, depois, se enamora da filha desse bicho de pasto. O Boi é o prólogo, abridor dessas porteiras que triangulam coronéis de exploração, trânsito e povoamento. Não nos enganemos; ainda que os trâmites variem, as visões de mundo convergem para um modelo de masculinidade movido a duelos fálicos entre canos, carros e caules. Patriarcado; segundo a Renascer de 1993, um mal necessário, que pode até fazer concessões como vacina contra possíveis revoluções. Há mais de três décadas, a vida de José Inocêncio (Antônio Fagundes) findava quando esse pai idealizado já não podia mais percorrer os horizontes conquistados pela palavra e pela pólvora; mas, principalmente, quando o filho provava-se pronto para fazer do pai, memória e legado, semente e ciclo. Como agora, para renascer à vida eterna — livrar-se dessa outra, eternizada em negociações com Deus e o Diabo —, esse Senhor Papai (como diria o Tistu de Maurice Druon) dependia de João-enjeitado, o caçula que lhe arrancara Maria Santa, mas que o devolve à ela ao arrancar a lâmina e cortar o pacto — “nem de morte matada, nem de morte morrida”, disseram os Josés Inocêncios diante dos Reis Jequitibás.

A árvore soberana (mais do que a lua) faz sombra ao Boi; se a ciranda aproxima e pulsa os corações, o Jequitibá enraíza a existência pelo artigo definido, já que o trato abrange uma só, única, sem brecha a coparticipações. Ele é o símbolo máximo da trama anterior, ao passo que o Bumba se restringia à posição narrativa de cataclisma e lembrança. A continuidade do rito entre as tramas se dá numa configuração movente, que reverbera e retroalimenta o amor romântico, pacto mútuo que se quer eterno, mas que nasce sob a tragédia incontornável da sujeição aos limites individuais das existências. O Bumba é Chico e Catirina, José e Maria, ou seja, são os encontros sob a ontologia da circunstância, que pode perdurar mais ou menos. Mas, antes dos laços, há o nó, essa amarração rígida que forma um gomo individual. Antes de qualquer movimento, há um homem de sobrenome fincado — José Inocêncio.

Eis, então, que o Bumba volta, em 2024, para abrir o ato final, anunciado pelo “metalinguarudo” Norberto, de Matheus Nachtergaele (casais se acertando, novela acabando). Mas, para que se atinja um novo equilíbrio, é preciso voltar ao casal originário desse paraíso que não é esvaziado de perigos, mas esbanja a proteção da pequena Pátria, Éden em que Eva supostamente não comeria a maçã porque está no reino do mandonismo (ou seja, o coronel não deixa). Ainda assim, esse homem primeiro a perde, porque Maria Santa (Duda Santos) — excluída do pacto primordial — faz seu próprio trato; e porque tudo o que nasce do Boi é esbarrão, impermanência. A novidade é que o Bumba não só volta, como vem preparado por outra árvore, genealógica, na conjunção entre bisneta e bisavó, uma hereditariedade consolidada por mulheres. Quitéria (Belize Pombal) inspira Teca (Livia Silva) e assombra Inácia (Edvana Carvalho), que não aceita a iminência da morte de José Inocêncio, pois vê o coronel pela ilusão do homem cordial, ignorando que ele é o vértice restante daquela triangulação viril original. A mulher negra — única fantasmagoria aprisionada nessa fazenda — volta para pedir a morte não do sujeito, mas desse símbolo que conjuga todas as hierarquias desse microcosmo, organizando para si um poder singular — Inocêncio (Marcos Palmeira) governa, abençoa e historiciza esse pequeno reino como tantos outros enfiados em confins desse mundo chamado Brasil. País de famílias lideradas por mulheres, mas em que o Pai continua miolo simbólico.

Então, o Bumba — cujo primeiro miolo era Venâncio (Fábio Lago), um pai-empregado — volta para engolir os fazendeiros, representantes de uma disputa intergeracional, mantenedores e beneficiários desse poder orbital, matéria-prima escassa que conserva as coisas como são. Para que haja pastagens aos bois, derrubam-se matas inteiras com todos os Jequitibás que porventura nela se encontrem, mas, ainda assim, na farsa popular do Boi, os brincantes cantam pedindo licença “ao dono da casa” e “capitão”, seja na propriedade da agrofloresta, seja na terra improdutiva. O verso da cantiga deixa implícitas a conciliação e a contradição da ciranda, já que submissão e a hierarquia não se desfazem nem mesmo num festejo que, noutros tempos, era perseguido, visto como subversão de escravizados que se atreviam à resistência da alegria. Bumba Meu Boi que caminha, gira, tromba e derruba, e assim, vai tecendo, em movimentos, uma trama/tramitação de violências e acomodações. Do jagunço aos coronéis, há Brasis no miolo do Boi, e, entre tantos, há sempre um Brasil que atira.

O Boi atira contra José Inocêncio, e uma pergunta se coloca: como filmar essa pele de panos recheada por pais opostos e patriarcas tangentes? Como transmutar o Boi farsesco em bicho trágico, guardião da derradeira tocaia que, ao impossibilitar Inocêncio de pisar em suas terras, em seu cacau, condena-o à morte? Como transcriar em imagens o rito que precede a ficção, mas que, na ficção, ganha valor próprio, símbolo dos ciclos, bicho contra planta, Boi ante Jequitibá? Éric Rohmer talvez seja um dos cineastas que melhor sintetizou uma resposta sobre o ato audiovisual fundamental de filmar: segundo o diretor, é escolher onde colocar a câmera e por quanto tempo deixá-la. Simples e sucinto. Então, como colocar a câmera diante desse olho espelhado, refletor de tantos olhares-sujeitos? Em 1993, a câmera ia às entranhas do bicho e, mesmo quando saía de baixo do couro, saía transtornada, pois continuava a caçar cirandas. Mas este é o retorno de um Boi que não se limita à roda, e que já se anunciava em aparições esporádicas, presságios entre os códigos do horror e do melodrama. Agora, pelas mãos de Teca e Quitéria, o Boi renasce na máquina de costura e entre as vozes cantantes. A Santa de Maria e os santos — modestamente pregados nas paredes — ouvem e testemunham, interligando-se à ação, compondo um sincretismo baseado no espaço dessa casa pequena. Quando Teca volta a si, o close é marcado pela intrusão do carretel, que tem função denotativa (Teca efetivamente costura), composicional (pois cria um eixo imaginário de tensão e atenção sobre o rosto), mas, sobretudo, simbólica, já que a última linha dessa trama se abre entre à caligrafia morta de Marianinha, o nome vivo de Maria Santa e a costura do Boi. Desenrolado por mulheres pretas, esse carretel dá a linha que retesará contra o fio do facão desse primeiro e último homem, que precisa morrer para ali renascer o tempo dos filhos fraternos.

Quando o Boi parte, reúne os personagens na ritual negociação entre roda e procissão, alternância entre estada e trânsito. A casa de Inocêncio, curiosamente, conjuga esses dois valores: é acolhida por onde passam várias figuras, por mais ou menos tempo. De lá, segue à casa do atravessador, aquela cujo verde só se vê na decoração (ao que tudo indica, inclusive na do quarto do futuro bebê); aquele que é coronel de bricolagem, que tomba sob o Boi e ganha chifres quando se levanta. Se os chifres-luminárias de Teodoro eram puro escárnio ao vilão enganado, entre os cornos do Boi, Egídio (Vladmir Brichtta) é o próprio Belzebu, pronto a tomar o corpo e a alma do bicho, deflagrando o ato final de Renascer.

Logo que o Bumba acaba e José Inocêncio devolve a máscara à casa-capela-terreiro, a questão volta: como filmar a personificação do Jequitibá diante do Boi? A câmera, então, grava a ação na vertical, prevendo que, no reestabelecimento à horizontal, o homem-Jequitibá se desenraize ao tocar a fuça bufante. Se José Inocêncio flutua nessa casa dos espíritos é porque ele próprio começa a se despregar da terra (que “é sempre terra”) e da Terra. Dali, segue à cachoeira da terceira e última tocaia. Não haverá outra se não aquela enterrada por ele mesmo aos pés da árvore, que continuará a nutri-lo com vida mesmo quando o corpo e o espírito desejarem a morte. A tocaia de Inocêncio fora plantada no primeiro capítulo. Quando o Boi surge diante da manta-manto, é quase uma zombaria, como se conquistasse a muleta e apanhasse o toureiro desprevenido. A montagem reúne os protagonismos passados e presentes, os olhos dos Inocêncios, a cavalgada da neta de Belarmino, a cabeça ausente da parede que suspende a gravidade.

O duelo entre José Inocêncio e o Pai Boi é injusto, muito injusto, injustíssimo. Primeiro porque não há horizontalidade; o Boi austero se põe, no alto de uma clareira, entre a câmera e a manta esvoaçante, velando e desvelando o sol que estoura o céu. É contra esse céu que o rosto de José Inocêncio encara o oponente entre flares, mas nunca pela frontalidade; os olhos de caubói, quando surgem, são de João Pedro (Juan Paiva), e quem cavalga, é Mariana (Theresa Fonseca). Quando a câmera passa pelos olhos-espelhos do Boi, o que se vê refletido é a grama, a terra, objeto das disputas, sujeito-contraparte no pacto do Jequitibá. Então, a partir do coração, do miolo cordial, o Boi bumba as balas. No contracampo, não há um pedacinho de chão sequer; o sol arde e o céu se impõe e abraça o corpo alvejado, visto pelo travelling semicircular. Antes de tombar no canto direito inferior do quadro, José Inocêncio, de novo, flutua; por um instante, parece prestes a ser abduzido. O fade out encerra o capítulo e quando a ação recomeça, no seguinte, o reencontro com Maria Santa é suspenso: puxado da água, manancial vital de onde emergem os arquétipos, o pai dá de cara com João Pedro e Mariana, esse casal feito dupla por esse pai, negociantes de Édipo e Electra, de projeções e recalques de dois órfãos apartados, respectivamente, da paternidade e do patriarcado.

Na versão de Bruno Luperi, o Bumba volta, costurado por mulheres, a esse reino de homens que, sem exceção, soam anacrônicos e obsoletos. Tampouco é o mesmo lugar; em 1993, apesar dos perigos, as cordas cordiais asseguravam um retiro de cura nostálgica, enquanto, aqui, um Brasil de contradições se apresenta numa redução alegórica possível, como gênese repetida e continuada dos tratos e traumas (e, diga-se de passagem, se apresenta a um Brasil colérico, que talvez se esquive da telenovela justamente porque ela é o retrato máximo das conciliações num modelo de televisão generalista, que por si só é mais democrático, como lembra Dominique Wolton). Não é a morte de Inocêncio que Quitéria deseja; é a queda dos homens que se querem deuses e, nessa fé autocentrada, acabam submetendo todos os outros. Paradoxalmente, ela ressuscita a lenda conciliadora de um país de conciliações impróprias, bem sintetizadas no rito do Boi — ciranda, procissão, colisão e retirada. Em 1993, a árvore estacada prevalecia sobre o movimento do Boi, conjurando uma trama de tradições permeável a algumas modernidades. Trinta anos depois, o bicho volta para provocar o Jequitibá, para lembrá-lo que, entre as estabilidades conciliadas, há permanências, retrocessos, avanços e ataques, que se alternam com mais ou menos violência. A pergunta volta: como filmar um Bumba Meu Boi? Gustavo Fernandez e sua equipe respondem pela imagem: sabendo onde colocar a câmera e por quanto tempo deixá-la para que o mesmo bicho possua miolos contrários, para que atravesse Deus e Diabo, sagrado e profano, festejo e tocaia, farsa e tragédia, vida e morte. Mas há uma unidade nessas dicotomias: sob o pano, sempre há um pai, e é a partir dessa sabedoria que a mais sofrida das mães urde um plano para conjecturar um outro reino desde a raiz, a partir do chumbo trocado entre os miolos do Pai Boi.