por Álvaro André Zeini Cruz

Duro. Cinza. Áspero. É inevitável que as palavras aqui apareçam como as imagens de Márta Mészáros. Em “Nove Meses”, elas concatenam os enquadramentos rigorosos (mas não engessados) a uma mise-en-scène mais bruta, interessada nas ações desprendidas do ponto de vista voyeur ou fetichista. Até porque este não é um filme da negação como impulso para a ilusão. Juli (Lili Monori) não alimenta ilusões: ela se desvencilha das investidas de Janos (Jan Nowicki) justamente porque sabe de antemão que aquele homem é incapaz de lidar com a realidade dela. Um saber que se concretiza quando ela cede.
A história de amor se alicerça numa paisagem nublada, digna dos filmes de Angelopoulos. Entretanto, não se trata da Grécia enevoada, mas da Hungria esfumaçada, lugar onde nem a câmera nem os corpos deslizam com a morosidade solene que há no trânsito dos Angelopoulos. Pois estes são caminhos esburacados. Os planos até mantêm camadas espaciais propícias a uma locomoção profunda, mas o tempo não titubeia em lascá-los, fazendo-os tijolos disformes, tal qual os que preenchem a casa que o casal reforma para uma nova vida. Pedregosa, essa casa se ergue contra uma paisagem que pouco tem de natural, já que um horizonte industrial se abre para produzir aquela que, provavelmente, seja a única matéria volátil nesse filme – a fumaça das chaminés.
A única não, porque é entre essa fumaça cuspida pelos ferros e concretos que Juli e Janos se abraçam; um dos momentos de carinho que logo se esvaem. As carícias e delicadezas se dissipam quase que instantaneamente. Constantes mesmo são os muros, como aquele no qual Juli se debruça quando Janos a proíbe de levar adiante a gravidez. Ela recosta o corpo contra a aspereza desse paredão que atravessa o quadro; um ínfimo escape, na margem esquerda, mostra um mundo quase tão cinzento quanto o concreto, estruturado pela mesma matéria.
Juli só não trinca porque seu rosto – com a ambiguidade das sardas titubeando entre a meiguice e a aridez – é tão sólido quanto qualquer outro preenchimento arquitetônico. Não à toa, surge em closes contundentes, contrastados por fundos vazios que fazem da pele e dos contornos da face últimas fronteiras, limiares da única estrutura confiável antes dos desfiladeiros do mundo. Não é uma personagem imune aos erros e sofrimentos, mas não os encara de viés, tampouco se perde entre cortinas de fumaça. Por isso, o parto que encerra a gestação-título é filmado por Mészáros com uma frontalidade incontornável. Dá à luz a um corpo concreto, manchado pelo líquido amniótico, sem a assepsia romantizada com que o cinema costuma encarar o trauma de nascer. Um parto registrado com a devida dureza da vida.
Em cartaz no MUBI.