por Álvaro André Zeini Cruz

Zelosa e vigilante acerca do oceano de imagens que cerca — às vezes, afunda — o povo brasileiro, a Marinha do Brasil pôs no ar um filme institucional com capacidade de conduzir-nos à outra embarcação — o Encouraçado Potemkim, capitaneado pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein. Pode parecer inusitada essa ponte histórico-geográfica, mas, para além da temática náutica, o longa de 1925 e a peça de propaganda contemporânea compartilham uma premissa básica eisensteiniana: montagem é conflito.
Para Eisenstein e seus contemporâneos soviéticos, a justaposição de dois planos heterogêneos, o atrito entre imagens conflitantes, produz uma ideia. Essa ideologia da montagem cinematográfica está no filme da Marinha, que, num pélago de cenas possíveis, opta por alternar seus bravos marujos em ação e imagens de civis, digamos assim, menos destemidos, numa edição fantasiosamente cotidiana. É preciso lembrar que montar não se resume a cortar e encaixar as imagens umas nas outras; é preciso escolhê-las e, nesse sentido, é inevitável imaginar o brainstorming que resolveu friccionar imagens como essas:
Marinheiros em emergência a bordo de um submarino / civis curtindo a balada;
Tanque em rua alagada / civis em festinha de aniversário infantil;
Praça em treinamento, se arrastando na areia / banhista civil bronzeando-se à beira-mar;
Martírio militar sob contra-plongée em sala de aula / taças de chopp erguidas num brinde, em plongée.
“É o sonho, senhor”, berra o militar, no penúltimo plano desse primeiro movimento de alternâncias regulares. O superior berra de volta, “então faça por merecer”. Abrupto, o corte estabelece um contraste com aqueles que, supostamente, não fazem por merecer. Um grupo em matizes veranis pratica yoga no parque. Para os milicos, somos nós, civis.
Mas tratamos aqui de um discurso audiovisual, portanto construído em duas camadas: a intercalação das imagens dita uma também minuciosa alternância sonora, que associa os silêncios a uma vida civil plácida e publicitária. Em contrapartida, os méritos militares são pontuados com acordes metálicos e suntuosos a la Hans Zimmer. Sim, falo do compositor das trilhas de Batman e de outros filmes grandiloquentes de Christopher Nolan, cujo realismo assepticamente filtrado parece impregnar-se à textura das imagens militares. A cola pode até ser soviética, mas o preenchimento é livremente inspirado na Hollywood pós-Marvel, de fazer o Rambo de Stallone corar.
Não podemos, portanto, acusar nossos heroicos marinheiros de comunismo; ainda que bebam de um cinema revolucionário, o capitalismo se apropria de tudo e tudo reduz — inclusive operações profundas entre imagens e ideias, renegociadas a uma peça como esta, de águas rasas. O braço praticante de crawl das Forças Armadas usa dinheiro público para, a partir de operações soviéticas, nos ensinar que as benesses mais caprichadas do capitalismo não são privilégios; são justiça social a um grupo que dá o sangue e a vida em encenações bélicas, enquanto outro, vive a vida em cenas publicitárias. Eis que surge o ruído, o ponto cego de nossos marinheiros: esqueceram-se de que toda mensagem tem um receptor. No caso desta, que tenta atravancar o corte de privilégios, o público-alvo é justamente a sociedade civil, que tem sido instada a refletir sobre as honrosas tarefas das Forças Armadas entre uma minuta e outra. Esse ruído comunicacional primeiro, talvez tenha provocado nossos guerreiros a nos contra-atacar com essa curadoria editorial da ridicularização. Na melhor das hipóteses, pode-se aventar que a peça é fruto de uma má-fé corporativista, que luta pela manutenção de benefícios abismais. Na pior, pode-se pensar que a Marinha do Brasil talvez não conheça o Brasil; quiçá, que a Marinha esteja ilhada.
Mas é preciso pacificar o país e, portanto, dar-lhes o benefício da dúvida. Seguindo a toada das caricaturas, podemos imaginar que, após a rotina árdua retratada, marinheiros e marinheiras encerram o dia tirando os coturnos diante da TV. No aparelho — que já não lhes é tão solidário —, acessam a Globoplay para se aventurarem nesse Brasil que tentaram imitar e, a nós, atribuir. Deleitam-se com as amenidades do Leblon, com as agendas de Donas Helenas, com o cotidiano de um Brasil onde a classe média mora num dos metros quadrados mais caros do país. E sejamos otimistas: nesta circunstância de militares que creem e reproduzem um Brasil de Manoel Carlos, golpe, se houver, será em alguma unidade Club Med. Talvez, em Rio das Pedras.
ps.: este texto só existe porque, tal qual a Helena de Vera F ischer, cancelei minha agenda da manhã para escrevê-lo.