Miragens de “Um Lugar ao sol”

por Álvaro André Zeini Cruz

Não é à toa que a logo de Um Lugar ao sol é azulada, como se a luz solar batesse diretamente, a ponto de distorcer a vista. É um conceito visual que simboliza a trama do herói que passa a anti-herói, seduzido pela luminância de uma oportunidade, mas acaba por ser duplamente – e ironicamente – simbólico, afinal a novela de Lícia Manzo foi lançada sob o sol de Pantanal, trama/trauma da Globo. Mas a atual novela das nove não merece ser lembrada apenas pela baixa audiência ou pela singularidade de uma produção pandêmica, o que a converteu numa obra fechada, com rumos incorrigíveis para além da edição. Um Lugar ao sol tem traços textuais incomuns, que, se não chegam a causar uma ruptura no fluxo televisivo ou uma inovação no gênero, podem indicar caminhos interessantes ao futuro da telenovela. Pois, apesar do descompasso contextual extralinguístico (com a audiência), é uma novela atenta a seu tempo no que diz respeito às cercanias teledramatúrgicas mais imediatas.

É evidente – e surpreendente – a transição do texto de Lícia Manzo ao horário das nove: conhecida por melodramas morosos das seis, Manzo trouxe à grade uma trama frenética e fragmentada, mas que mantém os núcleos coesos. É verdade que essa agilidade nem sempre esteve na trama principal (que não passou ilesa às chamadas “barrigas”), mas a história de Christian (Cauã Reymond) em quase nada lembra A Vida da gente ou Sete vidas (a não ser nos diálogos bem lapidados). Mesmo com viradas e ganchos recentemente desfigurados pela extensão do número de capítulos (providência tomada para, de novo, priorizar Pantanal), Um Lugar ao sol jamais perdeu, ao menos, uma impressão de agilidade. Contudo, a melhor cartada de Manzo não está no ritmo da narrativa, mas sim no remodelamento do batido plot dos gêmeos que trocam de lugar. O frescor da trama está na quebra de expectativa acerca dessa troca: ao contrário de Ruth e Raquel, de Mulheres de Areia, (além de tantos outros casos na telenovela), Christian usurpa o lugar do gêmeo sem conhecê-lo realmente, já que Renato morre após o primeiro encontro dos dois. Assim, a trama de mimese não é assombrada pela iminência da destroca dos irmãos, mas pela tensão que envolve a manutenção de uma personalidade desconhecida, descoberta e replicada durante uma farsa que pode desmoronar a qualquer ato-falho. Galã das novelas de João Emanuel Carneiro, Reymond vive esse anti-herói ciente de que tem nele sua melhor oportunidade em telenovela, ao menos até aqui.

A morte de Renato não elimina a trama de rivalidade entre irmãos, que se transfere para a relação entre Christian e Ravi, o irmão de criação. Interpretado por Juan Paiva, que tem a sensibilidade de manejar o personagem ao tom oposto de Reymond, Ravi se debate entre a lealdade ao irmão e o amor que sente por Lara (Andréa Horta), um sentimento recalcado desde o primeiro capítulo em prol do romance dela e Christian. Se Horta consegue dar personalidade ao clichê da mocinha incansável em se deixar enganar, Alinne Moraes completa a outra ponta do quadrado amoroso com uma figura mais complexa do que a rival, uma vez que o antagonismo de Bárbara é balizado entre a carência emocional e a cegueira social. 

Caçula de Santiago (José de Abreu), um magnata consciente e amoroso (desses que só existem em novela), Bárbara é a irmã propensa à chave trágica, uma vez que seu conflito é consigo mesma (antes de ser com o outro); Alinne Moraes consegue a proeza de manobrar concomitantemente a empatia e o desprezo do público. Já Nicole (Ana Baird) e Rebeca (Andréa Beltrão) – cujas visões de mundo são também distorcidas ou limitadas –, recaem, respectivamente, nas chaves cômica e melodramática. Rebecca é um caso interessante: a interpretação a la Fleabag de Andréa Beltrão popularizou e aprofundou uma personagem cujo drama é raso, pois só não se resolve porque a própria titubeia em deixar a zona de conforto. Em crise com a idade e apaixonada por Felipe (Gabriel Leone), um rapaz mais jovem, Rebeca hesita em terminar o casamento infeliz com Túlio (Daniel Dantas) por conta do status social, ainda que ela independa emocionalmente e financeiramente desse marido. A fragilidade dessa (in)decisão só não faz com que ela se entregue à futilidade porque Beltrão é dessas atrizes que transmutam inconsistências em contradições aptas à empatia. De toda forma, uma crítica sutil atravessa esse núcleo rico, que tem numa ponta, a caçula afogada na própria profundidade, e, na outra, a primogênita que se digladia com as superfícies do melodrama: para Lícia Manzo, por mais bem intencionada que seja a riqueza, ela sempre provoca distorções.

Um Lugar ao sol promove ainda um bem-vinda oxigenação no elenco do horário nobre: ainda que o interesse pelos atores não tenha se efetivado em audiência, a curiosidade por caras novas ou não tão regulares é uma pauta a ser retomada na teledramaturgia. Além de Andréa Beltrão e Ana Baird, há nomes pouco frequentes em novelas (Denise Fraga, Regina Braga, Natália Lage, Mariana Lima, Fernando Eiras, Cláudia Mauro, Cláudia Missura) e pouco conhecidos (Renata Gaspar, Indira Nascimento e, principalmente, Lara Tremouroux, numa das personagens mais controversas da trama). Há, também, duas escalações arriscadas: a primeira é a de Ana Beatriz Nogueira que, embora repita um tipo que lhe é recorrente – o da mãe controladora, ambiciosa e deslumbrada ­– traz para Elenice nuances que ora fazem dela uma mulher alienada e ridícula, ora, uma mulher perigosa; e Nogueira não descarta os vários tons possíveis entre esses lugares, numa figura que soa bastante contemporânea ao Brasil de agora. Ainda mais comentada – e criticada –, é a escalação/composição de Daniel Dantas para o vilão da trama. Associado a personagens boa-praça, Dantas faz um corrupto inescrupuloso, mas inusual enquanto construção vilanesca. Isso porque Túlio passa longe dos vilões assertivos e sedutores, comuns nas novelas. É um sujeito cuja fragilidade atravessa do visual pálido e antiquado à maneira de se expressar; nesse sentido, a dicção arrastada e carcomida, que tanto irritou espectadores nas redes sociais, é o coroamento desse antagonista, um engravatado-antítese do Marco Aurélio de Vale Tudo. Ironicamente, Túlio, o vilão é movido pela mesma ambição e pela mesma meta do anti-herói protagonista: ambos almejam a presidência da empresa do sogro. Para chegarem a esse lugar ao sol – que se resume a um status vazio, à posição por si só, sem nada mais incluso – mocinho e bandido traçam caminhos tortuosos, que convergem na cumplicidade e na renúncia a quase todo o resto: Túlio é um vilão sem vocação para bon vivant – não compra casas suntuosas, não faz viagens paradisíacas, não coleciona carros de luxo –, assim como Christian não tem tino para herói romântico e sentimental. São personagens que basicamente tramam e trabalham, ambicionando uma posição de poder virtual, desconexa das vivências e até das materialidades. Lícia Manzo faz de seu Um Lugar ao sol uma novela sobre miragens, com arquétipos postos sob um prisma e decompostos em matizes e meios-tons comuns. Duvidosos – quando não, imorais – Christian e Túlio são figuras complexas e contraditórias, que, de alguma forma, acabam contrastando a vilania plana e cartunesca que diariamente está nos telejornais. Um Lugar ao sol pode não romper o fluxo, mas, ao menos, se preocupa em criar contraste na grade-sanduíche.