por Álvaro André Zeini Cruz

Ao relembrar um episódio da infância, Keiko Furukura narra o pragmatismo com que usou uma pá para separar a briga de escola entre dois garotos. Adulta, essa mesma Keiko não comete, mas fantasia um infanticídio para livrar a irmã do esgotamento da maternidade. Tudo indica que Keiko tem alguma questão de ordem psíquica, ainda que Querida konbini não se interesse em diagnosticar sua protagonista. O que se sabe é que a família e os poucos amigos lamentam ver uma mulher japonesa de 36 anos solteira e num emprego considerado de entrada: Keiko é uma das funcionárias mais antigas e exemplares de uma konbini (como são chamadas as lojas de conveniência no Japão), trabalho que oferece a ela uma estabilidade básica, mas que, sobretudo, abre um mosaico de possibilidades sociais (“universitários, garotos que tocavam em bandas, desempregados, donas de casa, alunos do ensino médio noturno”) a serem assimiladas e imitadas conforme a necessidade. Essas convivências convenientes demandam rígidos protocolos comportamentais, que simultaneamente contrastam e abafam os lapsos em que a narração em primeira pessoa dá um vislumbre da Keiko que é e permanecerá um mistério, por conta do homem no meio do caminho.
Sentindo-se quase como uma peça vital da loja – nascida, segundo ela, no primeiro Irasshainaimasê direcionado a um Senhor Cliente –, Keiko não deseja deixar a konbini nem a longo prazo, nem nas imediações do dia a dia; a verdade é que ela acumula plantões e horas extras para sair o mínimo possível da loja, uma vez que não quer se sentir “despindo uma criatura e vestindo outra”. É pelos olhos dessa protagonista que a konbini é apresentada como uma espécie de Disney dos minimercados, uma estrutura organizada para atendar as mais diversas vidas em pequenas satisfações de consumo, com rótulos alinhados diante dos cupons de desconto ou do dim das moedas. A um só tempo operária e engrenagem, Keiko chega a descrever a diferença do eco de sua voz na loja cheia e a se perguntar se a água comprada na konbini continua em suas células. É sobre essa relação entre mulher e loja de conveniência que o romance de Sayaka Murata se estrutura a princípio, não fosse o homem no meio do caminho.
O homem é Shihara, um sujeitinho desmilinguido que aparece no meio da trama. Entre uma besteira e outra, ele faz confissões desconcertantes: diz que o trabalho no mercado não atende seus instintos masculinos e entrega um desejo sádico de vingar-se de mulheres, parasitando-as. É o que faz com Keiko, que permite por vislumbrar nessa situação um atenuante às cobranças sociais. Mas Shihara acaba afastando-a da loja, invadindo o espaço doméstico dela e estabelecendo uma espécie de triângulo amoroso que não se sustenta, afinal Keiko e a konbini são extensão uma da outra; a loja expõe, enquanto Keiko estoca, esconde. Shihara é, portanto, um invasor “não retificado” pelos “padrões compulsório do mundo”, mas que, ao mesmo tempo, se serve ocasionalmente das padronizações mais retrógradas para retroalimentar a própria mediocridade. É esse homem que se coloca no caminho do romance atmosférico de Sayaka Murata, convertendo-o à ação e dispersando as possibilidades de mistérios que interligam mulher e mercado. Difícil dizer se Shihara é tão desagradável a ponto de velar nossa visão de Keiko, ou se é a própria protagonista que se fecha em copas diante de uma vulgaridade tão genuína. Murata, sem dúvida, tem um ponto: na sociedade patriarcal que retrata, a mulher não pode sequer se esconder ou se iludir encontrando algum encanto numa vidinha rasteira. Keiko negocia a mediocridade dos dias em troca de alguma liberdade, mas acaba esbarrando com o mais medíocre dos sujeitos, aquele que é tosco em todo o seu ser. Tanto que uma personagem aconselha que não produzam nada desse encontro, que não procriem, não façam os genes perdurarem. Ao leitor resta a frustração de não descobrir mais da ligação e das lacunas guardadas entre a mulher e o mercado. Keiko permanece um mistério insondável. Culpa do homem no meio do caminho.