por Álvaro André Zeini Cruz
1.
“Eu vos deixo a paz. Eu vos dou a minha paz.”
— A paz de Cristo.
Cumprimentaram-se, mas o roçar do objeto preso à cintura fez um meio abraço.
— Ah, vejo que a paz está garantida. Qual a marca?
— Touros. Precisamos valorizar a indústria nacional.
— Calibre?
— 357.
— E qual é o estrago no indivíduo?
— Hum… mais ou menos como aquilo ali — respondeu, apontando em direção à palma aberta da mão direita, estendida, manchada, atravessada pelo prego que a prendia à cruz.
2.
Na aula de História…
— … fez rachadinha, destratou jornalistas, atacou mulheres, defendeu torturador, negou vacinas. Milhares de brasileiros morreram por causa dele.
— Nossa, Professora, como os brasileiros deixaram chegar a esse ponto?
Julinha e a Professora não sabiam que, castigados no Purgatório das aulas de História, estavam os avós da menina; os dois deixaram chegar a esse ponto porque tinham medo de comunismo. Assim como os avós de Pedrinho, que diziam que morador de rua é vagabundo. Também os de Carlinhos, que eram contra as cotas raciais porque tiravam as vagas de quem as merecia. E os de Enzo, que tinham medo dos sem-terra. E os de Maria, que, na única foto com a neta, posicionaram os dedinhos da bebê como revólveres (a mãe mentia e insistia que Maria apontava para uma bexiga).
— Garotinha mais cretina…
— Cala a boca, Olavo. Foram as suas aulas que meteram a gente nessa — responderam em coro os não tão bons velhinhos de bem.
3.
Sentado na beira da maca, o paciente desabotoou a camisa.
— Então quer dizer que você é de esquerda? — perguntou a médica, ajeitando a as luvas.
— An… sim — respondeu, distraído com os botões. — A mancha apareceu…
— E como aconteceu? Foi na faculdade? No trabalho? Relações sindicais? — a médica lutava para colocar uma segunda luva sobre a primeira.
— A mancha…
— Pergunto do esquerdismo. Por que um rapaz bem nutrido, de boa família teria tendências assim tão… comunistas? — a médica agora esticava uma terceira luva.
Meio impaciente, o paciente cedeu:
— É que eu acredito num mundo mais justo, com menos diferenças sociais, com o Estado investindo em educa…
— Cloroquina. Três vezes ao dia. E Ivermectina com limão espremido na água morna para expulsar as toxinas do glúten — disse a Médica, apertando os olhos e esfregando as mãos gordas de luvas de látex.
— A senhora não vai me examinar mais de perto?
— Não é preciso. A mancha é suficientemente vermelha.
O Paciente se vestiu e, já perto da porta, lembrou de dizer:
— Doutora, dizem que há contraindicação para cardíacos e eu…
— Eu sei. Espero que faça efeito antes do segundo turno.
4.
Trabalhava imerso numa correção, quando, de repente, um brado retumbante alinhavou os sons e as sílabas assim:
— Tem que dizer pro pobre que, pra comer picanha, não basta votar no Lula, tem que trabalhar também.
Então, um zunido tomou-me os ouvidos. Depois, uma desorientação.
Quem é? Quem sou? Onde estou?
Aos poucos, os sentidos e a cognição voltaram a funcionar. Eu estava com os pés no chão, com os dedos brincando de estátua sobre o teclado e com a bunda sentada na cadeira de escritório como base para um frio na espinha.
Eu estava ali e alguém tinha dito aquilo. Eu estava numa sala e alguém tinha dito aquilo numa sala. Alguém, naquela sala, ousou violar os meus e os outros tímpanos que trabalhavam e, assim, foram torturados sem sobreaviso. Ali, disseram aquilo com a naturalidade de um isto, de quem dilui na galhofa da rotina as barbaridades banalizadas.
Ali.
Naquela sala.
Dos professores.
5.
No Uber, no rádio:
“Jair Bolsonaro condicionou o orçamento da educação ao fim da política de cotas…”
— Isso mesmo, meu Presidente! Isso aqui não é Estado laico, não, é meritocracia!
“Bolsonaro também extinguiu o programa Farmácia Popular…”
— Bravo, Capitão! Tem que parar com esse mimimi de achar que o Estado deve bancar remédio. Hoje dá pra trabalhar até os 85, ajudar a economia do país! Meritocracia!”
“… disse que incentivará a diferença salarial entre homens e mulheres e reduzirá a licença maternidade”.
— Viva, meu Gestor! O país tá quebrado, não pode parar! E o tal ensino domiciliar tem que ter vídeo de coach desde criancinha, porque professor é tudo comunista. Meritocracia!”
— O senhor encoste onde der, por favor. Eu vou seguir a pé — disse o passageiro polidamente.
— Eita! Como assim?! O senhor vai andar 10 km a essa hora da madruga? Posso saber por…?
— Faço o esforço, mas tenho lucro imediato: a privação da má companhia.
O Uber acionou a seta e, manso, tentou um apelo:
— Qualé, colega, aqui vai ser foda conseguir outra corrida.
— Pô, se empenhe aí — disse o passageiro abrindo a porta. — Ah, e se estiver foda, nunca se esqueça: meritocracia!
6.
No mural do curso de jornalismo, Caloura e Veterana analisam um pedaço de papel:
— “Dar um cheque em branco”. Que nome engraçado para uma matéria.
— É nova! Mas tem como pré-requisito “Teto de gastos e responsabilidade fiscal”.
— E essa aqui, “click bait”?
— Essa virou obrigatória. Assim como esta aqui, “Editoriais apocalípticos anti-esquerda”. A continuidade, “Editoriais apocalípticos anti-centro”, é eletiva.
— Não dava para ser uma única disciplina? “Editoriais apocalípticos pró-direita”? Ou ainda “Editoriais apocalípticos pró-extrema direita”?
— Shhh. Esse lance de “extrema”, “ultra”, é tudo proibido aqui.
— Hum… E essa aqui? “Receita de pão de ló para bolo de brigadeiro em três camadas”.
— Ah, essa ninguém mais faz.
— Por quê?
— É da ditadura anterior… Quer dizer, da ditabranda. Saiu de moda.
7.
No céu, numa cumulo-nimbo, uma convenção sobre como e quando foram parar ali:
— Eu vim no dia em que ele falou de “histeria” por causa de uma “gripezinha”.
— Eu, no dia em que ele disse “tem que deixar de ser um país de maricas”.
— Quando cheguei, recebi o número 340 mil. Meu respirador parou quando ele disse “não vamos chorar o leite derramado”.
— Eu lutava para respirar enquanto ele, com um sorrisinho de deboche, nos imitava agonizando.
Então, um tentou consolá-los:
— Uma tragédia. Ainda bem que podemos ouvir as orações dos parentes e amigos que ficaram…
Então, direcionaram os ouvidos à Terra; um trovão raivoso soou lá de baixo:
— Mito, mito, mito!
Com as mãos na cintura e cara de poucos amigos, o resignado berrou:
— Ô, São Pedro, que inferno de paraíso que não tem isolamento acústico, hein?!
8.
Bonner: Renata, eu queria que você tentasse explicar a mim e aos brasileiros essa virada inédita numa eleição.
Renata: Bonner, é, de fato, uma virada inédita, mas não inexplicável; tampouco inesperada. A verdade é que, por trás daquela máscara de macho man, das flexões e das motociatas, o bolsonarismo sempre escondeu uma enorme impotência e certo complexo de vira-lata. E desde que esse quase outsider …
Bonner (interrompedo): E bota outsider nisso; foram quase 80 anos fora do poder!
Renata: Pois é, desde que esse sujeito ressurgiu, o bolsonarista raiz viu ali a possibilidade de ter um outsider – já que o bolsonarismo tem apenas uma lembrança vaga das aulas de História –, mas com vasta experiência em ultra-política. Um candidato ariano, precursor do slogan de Bolsonaro e que, ainda por cima, prometeu entregar o que Bolsonaro só fez graças à má administração da pandemia. Este aqui disse com todas as letras: irá importar os campos de trabalho, mais conhecidos como campos de concentração. A verdade é que desde que o clima brasileiro propiciou que este candidato voltasse do inferno, o bolsonarismo não titubeou em trocar a cópia pelo original. Cravou na urna um nome — Adolf Hitler.
Bonner: O que foi que fizemos, Renata? O que foi que fizemos?…
9.
Damares fala para a câmera; os dedos tamborilam numa caixa de sabão em pó.
— Minhas abençoadas, vamo falar de coisa boa?! Sabe o que eu tenho aqui na minha frente? O novo Omo quase todas as cores. O primeiro sabão em pó que, com uma tecnologia revolucionária, realça o arco-íris inteiro, menos uma cor. Isso mesmo, Omo todas as cores desbota o vermelho todinho, até virar cor de rosa! Chega de comunismo no nosso país. Com Omo quase todas as cores nós vamos vestir nossas princesas e transformá-las em garotas de rosa shocking!
Damares ouve algo no ponto.
— A produção está me dizendo que tem telespectadora com dúvida. Vamos atendê-la, vamos sanar essa dúvida para que essa nossa irmã possa ser uma melhor auxiliar do marido. Alô.
— Alô, Damares, me diz uma coisa: tira mancha de sangue?
— Claro, de sangue à goiaba, é o fim do vermelho. Você se machucou, Princesa?
— Não, não. É que meu marido é da PF e acabou de chegar lá do Bob Jeff. Sabe como é, né?! Depois de três granadas, acabou pintando um vermelho de estilhaço.
Microcrônica das utopias pós-bolsonaristas
— Mãe, como a esperança nasce?
Arrisca como quem tem certeza:
— A esperança não nasce, ela existe. Às vezes parece que ela desaparece, mas continua por perto. Está logo ali, ó.
Aponta.
— Cadê?
— No horizonte. Tá vendo a linha? É um fio de esperança pontilhada; um fiapo feito de estrelinhas que se juntam para tecerem futuros e utopias.
— Mas aquele fio tá sempre ali!
— Pois é…
O Menino olha além. Entende…
— Mãe, o que são utopias?
…em parte.