Meu burro, meu amante, eu e a Montagem proibida

por Álvaro André Zeini Cruz

Pois é muito importante notar que os animais de Tourane não são adestrados, mas apenas domesticados, e não realizam praticamente nada do que os vemos fazer (quando parece que o fazem, houve algum truque: mão fora do quadro dirigindo o animal ou patas falsas animadas como marionetes). Todo o engenho e talento de Tourane consiste em fazê-los permanecer quase imóveis na posição em que foram colocados durante a filmagem; o cenário ao redor, a fantasia, o comentário já bastam para dar à postura do animal um sentido humano que a ilusão da montagem precisa e amplia de modo tão considerável que, às vezes, chega a criá-lo quase que totalmente. Toda uma história é assim construída, com numerosos personagens em relações complexas (tão complexas, aliás, que o roteiro fica muitas vezes confuso), dotados de diferentes características, sem que os protagonistas tenham feito outra coisa a não ser permanecer quietos no campo da câmera. A ação aparente e o sentido que lhe damos praticamente nunca preexistiram ao filme, nem sequer na forma parcelar dos fragmentos de cena que constituem tradicionalmente os planos.

André Bazin. O que é o cinema?. Ubu Editora. Edição do Kindle.

A passagem acima é de Montagem Proibida, texto de André Bazin que, normalmente, é mal compreendido, pois, embora defenda uma preferência pela mise en scène, não interdita em absoluto o uso da montagem, mas sim alguns efeitos desse recurso narrativo, como o uso da experiência de Kuleschov para a antropomorfização de animais e personificação de objetos inanimados. Para Bazin, esse tipo de “magia” cinematográfica deve primar por uma impressão de realismo que se dá não entre os planos, mas dentro dos planos, como em Balão vermelho, sobre o qual ele discorre.

Nesse sentido, pode-se dizer que, em Minhas Férias com Patrick, Caroline Vignal é uma cineasta baziniana, uma vez que a relação entre Antoinette (Laure Calamy) e Patrick se estabelece mais no interior dos planos do que na conexão entre eles. É, por exemplo, num plano aberto que se cria a primeira gag, quando Patrick empaca e, tentando movê-lo pelo cabresto (em vão), Antoinette percebe a enrascada em que se colocou. Ah, sim, Patrick é um burro, e Antoinette, uma professora que, envolvida com o pai de uma de suas alunas, meteu-se nessas férias frustradas na esperança de esbarrar com o amante pela viagem feita em trilhas.

Antes que esse encontro aconteça, Antoinette e Patrick caminham – e empacam – por paisagens que demandam a abertura dos enquadramentos; se a trilha começa com a recorrência de planos conjuntos um tanto primaveris, logo se abre às paisagens austeras, companheiras de viagem que lembram aos corpos a dimensão do mundo. Passantes vão e vem, ora como paliativos à solidão, ora como catalisadores do desejo por ela. Quando Antoinette e o cafajeste se trombam, ele titubeia entre fetiche e o temor. A esposa, em compensação, é certeira: sabe do affair, mas explica que, embora não haja mais desejo sexual, há algo, uma conexão entre ela e o marido. A conversa, que coloca os mistérios e nuances tonais existentes nas relações, se dá num plano sequência duro, em que a câmera encara o rosto categórico de Eléonore (Olivia Côte), o desconcerto de Antoinette (que ela tenta dissimular) e a impassibilidade de Patrick, o burro companheiro, que conecta – ou separa – as duas mulheres.

Mas mesmo num filme de corpos em conjunto, Vignal captura obstáculos quando menos se espera: no alojamento, Vladimir (Benjamin Lavernhe), o amante, sobe a cama-beliche acima de Antoniette, e a diretora filma não só o olhar vigilante – mas dissimulado em simpatia – de Eléonore, como a passagem das canelas do homem entre os colchões. Vignal, então, filma o que poderia parecer dispensável, mas que, aqui, sintetiza uma solidão: a subjetiva de Antoniette, que vê o colchão e as molas cederem ao peso do corpo que ela deseja e que, ironicamente, está sobre ela, inalcançável. O contraponto a esse campo/contracampo do desejo obstaculizado e recalcado está na alternância que prepara o clímax-conjunto – o reencontro (depois de um desencontro) que marca a despedida entre Antoniette e Patrick. Num momento digno das sequências de aeroportos (ou estações) em comédias românticas, quando uma parte tenta evitar o embarque da outra, burro e professora correm, um em direção ao outro. O zurro de Patrick, a corrida desajeitada, o abraço de Antoniette, o beijo grato que ela dá no focinho do burro, culminam no mais terno dos planos, aquele que coroa a interpretação de Calamy (estranha e radiante) e que contorna a aspereza inevitável do filme de Caroline Vignal – num mundo de jornadas solos, Patrick é um bom companheiro. Em um encontro como esse, a montagem é proibida.