Meio-dia no jardim do Bem e do Mal

por Álvaro André Zeini Cruz

Às vezes, a novela dói. Ou melhor, machuca, gera dor naqueles que a assistem sob o duplo sentido do olhar e do auxílio. E dói porque, na negociação entre retrato e espelho (metáforas, entre outras possíveis, acionadas pelas teóricas Maria Immacolata Vassalo Lopes e Esther Hambúrguer), entre ficcionalização e lampejo intruso do real, pode ocorrer do vidro se estilhaçar, rasgando o olhar (como em Buñuel) do espectador mais incauto, que buscava ali um escape acolhedor, um hipnotismo alienado.

Em minhas aulas sobre telenovela, costumo começar contrapondo dois casos recentes e concomitantes — o sucesso de Verdades Secretas e o fracasso de Babilônia. Novelas tidas como fortes nos temas tratados, a primeira primava por um didatismo textual (característica que Walcyr Carrasco carrega, provavelmente, de seu trabalho com literatura infantil), cuja impostação se alinhava à estilização das cores e da textura das imagens, embrulhando o roteiro de Carrasco num retrato fetichista que evidenciava um posicionamento do público como espião da fechadura. Assim, o que se via era o outro, próximo é verdade, mas ainda assim, não eu, não nós, o outro. Em contrapartida, permeada por temas como racismo, homofobia e violência urbana, a derradeira trama de Gilberto Braga (assinada com Ricardo Linhares e João Ximenes Braga) alocava o espectador noutra perspectiva: não havia ali uma realidade palpável distanciada na estilização discursiva ou imagética, mas um reflexo recortado de um real diariamente visível a muitos, exposto — na hora do jantar — a um país que, naquele momento, não teve estômago para encarar-se com tantas problematizações. Diante dessa reflexão dolorida, os estilhaços saíram pela culatra e acabaram desfigurando a própria trama.

Em meu trabalho sobre a Renascer original, descubro uma novela que reimagina o reino do homem cordial — que tudo coopta ao íntimo e privado — a partir de algumas correções/concessões modernas, mas longe de estar completamente entregue a uma modernidade que lutava para se reerguer de uma crise, tentando se desvencilhar da memória das poupanças confiscadas, da inflação nos supermercados, do impeachment do presidente com pinta de galã de novela. Nesse contexto, a fazenda-feudo de José Inocêncio não era um lugar imune aos perigos do mundo, mas seguro sob a salvaguarda desse pai ideal, cuja cordialidade (germe do patrimonialismo) acolhia, e a autoridade simplificava — o mundo se tornava menor e mais fácil sob proteção desse pai privado, amplificado para ser nacional. Abria-se, assim, um universo horizontal pautado pela vastidão e beleza das paisagens, sem que se reconfigurasse (para além do contraste) a profundidade intrincada da vida urbana em plena redemocratização (não à toa, na abertura, a cidade nascia de um abismo aberto no campo).

A apresentação de uma personagem intersexo era um desses avanços negociados, assim como a representação de um protótipo de sem-terra (Tião Galinha, cujo sonho/luta restringia-se ao individual) e de uma menina de rua (Teca). Desses três personagens, sobre os quais Maria Carmem Jacob de Souza se debruça em sua tese, apenas Buba se instalava em definitivo nesse universo patriarcal, ainda que sua aceitação dependesse de uma performance feminina idealizada por esse sistema, sintetizada há alguns anos como “bela, recatada e do lar”. Acolhida por Buba e levada a esse contracampo, Teca e o namoradinho, Pitoco, deixavam a fazenda de José Inocêncio antes do último capítulo, tomada por uma súbita saudade do mundo (ainda que seu mundo fosse a vida nas ruas). Tião, por sua vez, passava de sem-terra a sem sonho, e humilhado na esfera pública, refazia a morte de Vladimir Herzog, lembrando que, se as ditaduras matam com mãos palpáveis, as democracias o fazem com mãos invisíveis, institucionalizadas e subordinadas ao capital (como lembra Maria Rita Kehl, a democracia desnaturaliza as desigualdades, mas não necessariamente as corrige). O inconformismo de Tião morre como faísca abafada nas mãos do Estado quando ele é marginalizado em definitivo da “proteção” própria daquele espaço, ou seja, quando Tião deixa de caber nesse universo sem ameaçar desregulá-lo, sem arriscar seu funcionamento. 

Renascidos em 2024 (Tião sobrevivendo mais do que seu original), esses personagens estiveram no centro do capítulo da última sexta-feira, 09/08/2023, que teve como âncora o casamento de Buba (Gabriela Medeiros) e José Augusto (Renan Monteiro). Casaram-se não na discrição de um cartório, como em 1993, mas com pompa e circunstância, no quintal da casa-grande, coração de um feudo menos injusto, mas ainda hierarquizado sob masculinidades. A sequência concentra boa parte dos personagens, mas dois estão na cena lateral: Tião e Pitoco, que conversam num intervalo na lida. Agora tabaréu, o ex-menino de rua fala que é uma satisfação estar ali entre eles — entre gente como ele — tratando (curando) dessa terra “lascada”, como diz Tião. Breve, esse último respiro (de trabalho e de normalidade) termina com o plano detalhe dessas duas mãos se encontrando.

A cerimônia começa e, das mãos, vamos aos braços: coronel-pai ideal, Inocêncio comunica Buba que suprirá (ainda que momentaneamente) a recusa do pai de sangue — ele a levará ao altar. Nessa elipse entre o quarto e o alpendre, um relincho e um engatilhar soam na fazenda vizinha, detendo Tião, que observa o movimento da mata. A câmera, então, passa pelos olhos de Irandhir Santos, ex-caubói/capataz (em Meu Pedacinho de chão), agora na ponta mais frágil, aquela que, normalmente, estoura. Essa varredura — que passa e descentraliza o olhar — inaugura o modus operandi da decupagem da cena conexa, e dispara a alternância irônica em que as cenas ecoam uma sobre a outra, sem, de fato, convergirem.

Intrincada montagem paralela (uma leitora lembrou da provável referência da sequência do batismo em O Poderoso Chefão). De braços dados com o sogro — que sentiu por ela simpatia; depois, desconfiança —, Buba desponta nesse alpendre elevado, dado à vigilância. Soam também os acordes da música intrusa — rearranjo do belo instrumental da abertura de Éramos Seis —, que costura o crescendo melodramático entre a plot que encontra o happy end e a trama de uma tragédia repetida, projetada. Um contraste formal se firma: enquanto o casamento é decupado em movimentos de câmera (e slow) que fragmentam os rostos entre colarinhos e maquiagens, na mata, os quadros priorizam o todo das faces pontilhadas por suor. Os olhares orbitando a entrada da noiva se alternam aos olhos dos trabalhadores, que se veem cercados por jagunços. Quando Buba para e estende a mão ao pai, Pitoco — de certa forma, conduzido até ali pela trama de Buba —, leva uma coronhada. O mandante da violência surge no plano colado em seguida, mas quem nos leva a ele é Eliana (Sophie Charlotte): o corte justapõe o despeito de Eliana, que assiste a outra — tantas vezes por ela subjugada — transpor a última questão em aberto: a reconciliação com o pai. Eliana, então, desvia o olhar e encaramos (nós e ela) Egídio, patriarca “democrático” na opressão que se estende do gênero à classe, do sangue às cercanias, que transmuta tudo o que toca em carne marcada (como Marçal), em posse. Antes de retribuir o olhar de Eliana, o de Egídio parece perdido, mas a montagem cria uma falsa espacialidade que direciona essa vista a Humberto, o pai de todas as recusas que assolaram Buba, mas que, agora, se levanta.

Um tiro soa no extracampo de Tião, disparando o travelling in pela fileira de convidados em direção a Egídio, que enxuga as lágrimas. A performance deixa Eliana incrédula e inconformada, mas a câmera segue avançando e se desvencilha dela para flagrar o instante em que Egídio se recompõe da emoção contraditória: é num arfar que Brichta se desfaz da sobre-interpretação de Egídio, revelando com exclusividade (para nós) o cinismo desse rosto transformado, agora monolítico. A emoção dele é improvável, mas não impossível: é plausível que Egídio se sensibilize diante do reconhecimento (talvez subliminar) daquela que, ali, se coloca como sua antagonista máxima — enquanto Buba representa mais do que “balançar o mundo” porque personifica as voltas que o mundo dá, Egídio é a estaca que tenta estancar as rotações terrestres, desejando atravessar da superfície ao inferno para providenciar um movimento oposto, retrocedente. 

Lívio, outra figura paterna idealizada — pastor raro como representação; talvez, como existência — abençoa a união do filho do coronel com uma mulher trans (no país que mais comete crimes contra pessoas trans). Assíncrona, a voz do pastor alinhava a sequência junto à música, discursando sobre Deus e amor nesse reino de homens em que, de um lado, o rito matrimonial (em representação tradicional) se realiza sob um paradoxo — porque está não no templo (institucional) de Deus, mas no quintal desse patriarca adaptado (não à toa, o olhar de José Inocêncio surge para abençoar a troca da troca de alianças); do outro, os corpos sucumbem sob a truculência cuja fonte é ausente, porque não precisa ser fisicamente presente, tem poder para estar na cena vizinha — o patriarca autoritário e sádico, a elite do atraso cinicamente civilizada entre convidados que a aceitam num teatro de conciliações e dissimulações interesseiras.

Na costura contrastada entre as cenas, a mulher trans concretiza o desejo e o direito de reproduzir um rito em encenação impregnada da moral cristã e burguesa; e, nesse sentido, ao fazer-se noiva com tudo o que lhe é direito, Buba dá um nó no patriarcado em seu berço. Resta a Tião e Pitoco outro ritual, repetido, secular, sádico, pautado para desconjuntar corpos e desorganizar associações. Como bem observou uma leitora, ali, fraternos, estavam os descamisados da cidade e do campo, até que são postos sob um só cassetete que (re)abre feridas e um traço basilar — a questão de classe, incontornável dentro de um sistema que encadeia e submete todas as outras. 

Entre a cerimônia e a surra, o melodrama se espreme a ponto de salientar seus contornos mais trágicos no lado de lá, para além das vistas encantadas com o lampejo civilizatório do lado de cá. Espremem-se também as contradições entre objetos: com o vestido de noiva herdado da avó (memória do único acolhimento imperturbável), Buba vive plena a valoração positiva do mais clássico dos desenlaces melodramáticos. Sob o olhar (aparentemente) emocionado de Egídio, que se expõe calculadamente até o momento em que mascara os olhos com outra herança — os óculos do pai, coronel antes dele, truculento antes dele. Esse item-extensão especular, que presenteia o olhar com tons passados, é confrontado, na montagem, pela “lente” de Tião — a colher, outrora fincada na terra; talher não cortante e primordial, que, após o seio, inicia todas as alimentações e nutrições. As ferraduras dos cavalos trotam sobre os corpos trabalhadores, pisoteiam o pacto de Tião, esse sujeito reiteradamente pisoteado num plano para que deixe de ser sujeito.

Se a mise en scène do casamento é toda baseada numa decupagem fugidia, é porque algo de concreto, de palpável, acontece na carne da cena ao lado. A dor desponta; primeiro porque ela é incontornável à dramaturgia; segundo, porque a telenovela brasileira costuma refletir de alguma forma, as dores que comovem o país (seja de maneira mais frontal ou de relance; o desafio é entender o timing desses posicionamentos). Na corrente que encadeia essas cenas, está a impossibilidade da audiência estrondosa: entre a caminhada avante e o pisoteio que dá manutenção aos retrocessos, há um país (e uso o artigo indefinido propositalmente) diante de uma novela que traz um espaço de antes não mais como redescoberta nostálgica, mas como lugar de um presente entranhado por passados contraditórios (o que faz com que o presente assim se mantenha). Nesse jogo das vistas, há quem não queira se reconhecer no retrato e há quem se incomode com o vidro diante dele, ou melhor, com o reflexo que (em maior ou menor grau) insere a todos nós na imagem. Há também os que doem diante desse paradoxo montado entre o mundo que avança em passos e brechas, e um grande Brasil, que se esforça em fazer renascer, em reapresentar, todos os dias, o pior do passado. Há, certamente, aqueles que se envergonham diante de uma autoconsciência conciliatória, que se contenta em “balançar” o mundo sem de fato rebalanceá-lo. Há, por fim, aqueles que não querem sentir o incômodo de reconhecerem o próprio sadismo, herdado e conservado, ora escamoteado, ultimamente, às claras. Porque há pessoas que gostariam de deslocar Buba para a cena de Tião e Pitoco, que gostariam de acender as tochas e queimarem as carnes, como Egídio.

Para todas as outras, há Renascer. Talvez, por isso mesmo, seja uma novela de poucos.