por Álvaro André Zeini Cruz

Se a versão original de Pantanal (1990) é lembrada pelas paisagens ermas capturadas com languidez, pelo erotismo dos banhos de rio e pelos tuiuiús que sobrevoavam o quadro, a releitura Global retomou esses elementos com parcimônia, uma vez que investiu mais num valor de produção ligado à captação tecnológica dos espaços do que na temporalidade dos planos. Inesperadamente, por mais que as vistas pantaneiras tenham permanecido um atrativo desta nova versão, o pantanal de Bruno Luperi teve como destaque, não a fauna, a flora ou os horizontes em lusco-fusco, mas aquilo que é capaz de mirar e reagir a tudo isso – um semblante. Na terra dos homens cordiais de José Leôncio, o rosto de uma mulher se tornou o ponto de fuga nas imagens sempre em que despontou em cena. Pois, se na trama do avô o quadro era centrífugo, a grande mudança na adaptação escrita pelo neto é a força centrípeta que esvazia as bordas imagéticas e conduz o olhar em direção à face de Maria Bruaca (Isabel Teixeira).
Bruaca é apresentada assim, com o epíteto nada lisonjeiro dito e repetido pelo marido como um segundo nome; além de explicitar a submissão matrimonial, o apelido a contrapõe à outra Maria da trama, a Marruá (Juliana Paes). Isso porque, se a última vira onça para resguardar seu pedacinho de chão, Bruaca começa como a esposa letárgica, cujo olhar vazio se perde entre as paredes da Casa-grande e os próprios pés. Casada com Tenório (Murilo Benício), grileiro que manda matar e depois se apossa, ela não conta com a sorte do sobrenatural animalesco desse realismo mágico (como Marruá); Bruaca abaixa a cabeça – literalmente, numa subordinação que se traduz da postura ao gestual – e se resigna ao aprisionamento doméstico, preenchido entre afazeres e humilhações. Sua virada envolve a decisão de ser só Maria; para conseguir se livrar da Bruaca que lhe fora imposta, ela tem que navegar e nadar para além dessa casa arcaica, que só lhe oferece o fogão à lenha. Maria tem que desbravar o pantanal.
O primeiro impulso é simbólico: vestida, ela se joga no rio, não sem antes levantar a cabeça para decretar à câmera distante – dali em diante, só fará o que quiser. Então, as pernas se cruzam num caminhar desajeitado, de quem reaprende a andar. A mudança no semblante – o nascimento do sorriso – toma o plano, ainda que o quadro continue aberto. Pouco importa o barco ou o peão Alcides (Juliano Cazarré) ao fundo. Se esta é uma terra em que os homens se apossam dos alqueires alheios, Maria toma para si a imagem.
De Bruaca ela passa à Chalaneira; entre essas duas coisas, descobre que Tenório é patriarca de outra família (paralela, subjugada pelo racismo). É a brecha para que Maria redescubra a sexualidade e a sensualidade, dela e dos outros (sejam eles mocinhos ou malvados). Libertando-se aos poucos da postura reumática, o corpo se lança numa interpretação com sentido determinado: brota dos pés, atravessa e estica os músculos do corpo para, enfim, culminar no rosto que Isabel Teixeira empresta à personagem. Não um rosto qualquer; um rosto arredondado, emoldurado pelos cachos e pela ambiguidade dos olhos e da boca, que ora se retraem misteriosos, ora sorriem largos. Teixeira cede à Maria uma cara ambígua, a um só tempo comum e singular na televisão brasileira. Consciente dessa dicotomia – num rosto até então desconhecido ao grande público –, ela cria e negocia (não sem mistérios) a complexidade de uma face que deseja, dissimula, debocha e dói. Muitas vezes na mesma cena.
Maria tem o rosto do desejo (antes silenciado, agora silencioso) quando espicha o pescoço e empina o nariz para cheirar o suor do peão-vilão no varal. Tem pálpebras equilibristas, que suspendem as lágrimas para que os olhos lampejem verdejantes quando aponta uma arma contra o marido autoritário. Tem lábios grossos e elásticos, que velam e desvelam os incisivos levemente desalinhados, enquanto acompanham Almir Sater na doçura de Meu primeiro amor; a voz grave, meio rouca, soando junto ao sol sobre os cachos. Maria tem só um fragmento de rosto na cena mais abjeta de Pantanal: quando Tenório estupra Alcides, é por uma fresta entre as tábuas que a face de Maria assiste a violência. Por esse naco de rosto, reflete-se o horror dessa terra de Josés e Tenórios. É o suficiente.
Contudo, questionada sobre sua cena preferida, Isabel Teixeira não escolheu qualquer uma dessas ou outras mais evidentes entre as inúmeras que roubou para si. Pelo contrário, optou por uma cena de passagem, segundo ela pelo contra-cenar improvisado com Benício. Na cena, Maria e Tenório se preparam para dormir; iniciando uma dança sincronizada, puxam o lençol e sentam-se à beira da cama. Depois, inclinam os corpos e se cobrem num perfeito espelhamento. A simetria só acaba quando ela erra na hora de apagar o abajur. Trata-se de uma cena curta e de aparente desimportância, mas que revela a atuação como construção das trocas explicitada nos gestos. Mais do que isso, abre uma falha, um ato-falho na história deste casal que não se ama, mas que talvez, um dia, tenha se amado. Talvez antes de ele embrutecer, talvez antes de ele embruacá-la. Fato é que, numa trama de tantos “eles”, mais do que Juma ou Maria Marruá, permanece esta Maria transbordada sobre a Bruaca, que soma e embaralha tantas outras que estiveram entre as cantadas por Gil (“por só ver em seus olhos / A tristeza cinzenta”) e Milton (“é preciso ter força, é preciso ter raça”). Se houve algo que secou, alagou, verteu, escondeu e revelou neste Pantanal, foi a interpretação de Isabel Teixeira. Labuta talhada num rosto de antíteses, de Maria capaz de seca e de brejo.