por Álvaro André Zeini Cruz

O jogo vira o tempo todo. Mas a que custo? Eis algumas peças que escorregam sobre o alicerce de Mania de Você.
1. Falta equilíbrio ao quarteto protagonista. Maví, como tem se falado, é o mais complexo desses personagens, porque sua ganância vai além do ter material, consumista; sua questão está acerca do poder como um valor mais abstrato. Além disso, ele tem um nobre calcanhar de Aquiles: é capaz de amar, ainda que esse amor extrapole em ações questionáveis. O problema é que, para que esse master mind se desloque entre dissimulações, a novela sacrifica a inteligência de suas duas protagonistas (que, aliás, pouco têm de Flora e Donatela). Luma (Aghata Moreira), por exemplo, caiu no velho golpe das procurações sem nem titubear, só para que “o jogo virasse” rapidamente. Viola (Gabz), que conhece bem a índole e a ambição de Maví, se deixa enganar por uma suposta vingança da qual não se tem muitas pistas. A impressão que dá é que uma boa DR entre Viola, Luma e Rudá (Nicolas Prattes) resolveria todas as arestas. Ah, mas Rudá é um protótipo de “Pescador Parrudo” (de Kubanacan), só que abastecido com água de chuchu. É um protagonista difícil de salvar, principalmente depois de ele ter deixado a namorada de dez anos (que, inclusive, o tirara da rua da amargura) com uma desculpinha esfarrapada fustigada pela tia (outra cheia de valores, mas que se esvaem por oportunas crenças no destino). Que a pobre Filipa (Joana de Verona) não pise mais em Mania de Você, ou periga Viola e Luma perderem, se não o protagonismo, a torcida.
2. A farsa de Maví faz sentido a um Big Brother que quer se manter incógnito — olho que tudo vê sem ser visto —, mas precisava ser melhor ajambrada desde a primeira fase. Para isso, João Emanuel Carneiro poderia ter reaproveitado a ideia da facção, de A Regra do Jogo, revelando lentamente o funcionamento desse condomínio/resort nas mãos de um proprietário oculto e homens que o servem. Sim, porque se há uma tônica em Mania de Você é a da corrupção dos homens; não há um que saia ileso (mas isso fica para outro tópico). “Grande arquiteto”, Maví, muitas vezes, age para conter danos de coisas que lhe escaparam, o que enfraquece o personagem; e haja interpretação de Chay Suede para dar verossimilhança a cenas como a de ontem, em que o vilão, de novo, dá uma volta nas duas moças, mesmo com argumentos duvidosos. Da mesma forma, a confiança que Luma deposita em Mércia (Adriana Esteves) só faria sentido caso a mãe de Maví (que deu um golpe em Luma) tivesse exercido um papel evidentemente maternal (ainda que dissimulado) à protagonista, algo que não aconteceu. Por ora, fica difícil acreditar na confiança que Luma tem em Mércia, que ela sabe ser uma mentirosa contumaz.
3. É interessante a ideia dos núcleos dos machos escrotos se espelharem; inclusive, foram assim apresentados — enquanto o ciumento Hugo (Danilo Grangheia) implicava com o decote de Diana (Vanessa Bueno), Robson (Eriberto Leão) pedia que Fátima (Mariana Santos) vestisse gola alta para esconder uma suposta papada. A mensagem é clara: ainda que as situações difiram superficialmente, no fundo, são uma só, com duas mulheres presas a casamentos infelizes. A trama de libertação entre elas (seja pela amizade ou pela relação romântica) pode trazer alguma brisa a uma novela claustrofóbica (mesmo quando há paisagens, logo dão um jeito de “nos mergulhar” na água). Os maridos carecem de pontos de exceção, isto é, alguma contradição que não os faças “maus que nem pica-paus”, que cave neles uma complexidade, nem que seja algum resquício de personalidade passada (talvez algo que tenha levado essas mulheres a amá-los, ou a tê-los amado). A trama de Dhu (Ivy Souza) e Edmilson (Érico Brás) replica essa plot no contexto de uma família pobre, o que explicita a mensagem — macho escroto independe de classe social. Grangheia, aliás, faz o terceiro seguido às 21:00 (antes, esteve em A Lei do Amor e Um Lugar ao Sol) e é preciso reconhecer que, apesar do texto jogar contra, ele se esforça para expandir as dimensões de Hugo.
4. A parasitação de Parasita ainda não aconteceu: embora os atores estejam bem, a trama corre quase como um esquete paralelo, a exemplo do que acontecia com Pai Helinho em Da Cor do Pecado, e o núcleo de Otávio Augusto e Eliane Giardini em Cobras e Lagartos. Giardini, que está também nesta, vive Berta, que é justamente quem conecta esta trama à principal. Investir nela e no eclipsar desses núcleos/histórias poderia trazer mais coesão à novela. Por ora, é Gi Fernandes quem se destaca como a golpista malandra que, diferente dos pais, parece ter alguma moral querendo aflorar.
5. Por fim, a direção, no geral, é correta, mas, como em Todas as Flores, recai num multi-câmera bem beabá na dramaturgia de estúdio e exagera na estetização das transições e cenas externas. Resulta num trabalho quadrado, que encaixota ainda mais as internas — que, além de tudo, parecem sempre afobadas, sem ter o tempo e os silêncios devidos ao drama —, enquanto asfixia a praia em estética publicitária. Na tela, é como se Tropicaliente ressuscitasse na era da Instagramalização.
Oras, o que de bom você vê, então, na trama?, o leitor deve estar se perguntando.
O alicerce. Como disse noutras oportunidades, JEC faz novelas-teses, e, nesta, a tese está instalada na ideia desse homem-panóptico que sobrevive no filho renegado, que, por sua vez, leva adiante um microcosmo de controle e poder. A questão é que o rapaz é melhor do que o pai, porque enquanto Molina é simplesmente abjeto, Maví consegue amar. É uma estrutura interessante em que o duplo se encastela nessa torre hereditária e geracional, bem diferente do que acontece à dupla de mulheres, cuja amizade e o rancor se baseiam na horizontalidade da cozinha. Aliás, ainda há tempo para que Viola e Luma não dependam só das boas interpretações de suas atrizes. A correção a ser feita é posicioná-las como complementares, a gastronomia de uma dependendo do olhar, da mão e do paladar da outra (superando, portanto, a trama escopofílica/voyeurista). Ambas configurando um mise en place de paixão e lucidez que se retroalimentam; um sistema conectado, interdependente, com roldanas. Um jogo com Mania de Você.