por Álvaro André Zeini Cruz

David Lynch. O nome constava em destaque no rodapé do DVD, posto discretamente no rodapé da estante de lançamentos. Acima do nome, Naomi Watts e Laura Harring, os rostos colados, olhavam para o alto, para um ponto convergente no extracampo, na extracapa. Levou algumas visitas até que aquelas mulheres — os olhos misteriosamente assombrados acima do letreiro de Hollywood — me convencessem a uma locação. Até que, numa tarde amarela de tanto calor, trouxe Cidade dos Sonhos para casa; talvez porque a cor do dia ornasse com a capa.
Aos 14, o mundo de Lynch me a-pareceu indecifrável. As imagens eram mais que contrárias a tudo-pouco que eu havia visto; eram enigmas distantes, assustadoramente longínquos, intocáveis a uma adolescência média. Mas as imagens tocam, mesmo quando o olhar não as alcança. Uma ficou: o mendigo de olhos vidrados, que desliza rente à câmera como uma aparição monstruosa e hipnótica.
Talvez seja o mistério do cinema de Lynch: aquilo que a um só tempo fascina e horroriza não são as imagens-objetos, a simples formação na tela, mas esses fantasmas que, capturados pelas retinas e indecifrados pelo cérebro, ficam no meio do caminho, entre-imagens. Assentam-se, intrusas, entre bifurcações interiores e incompletas. Assombram tanto pela forma quanto pela falta, assim como os sonhos, que se formam inevitavelmente a partir daquilo que nos falta conscientemente. Forma e falta nos são coisas inalienáveis.
Mas há sonhos que são especialmente teimosos: aos 17, o filme incompreendido — quiçá indecifrável — descobriu um caminho e voltou por conta própria, na lista de filmes para o vestibular. A revisão, agora obrigatória, atendeu às expectativas: o tempo havia sido insuficiente para urdir qualquer decodificação mais transversal. A experiência, no entanto, foi mais fluida, menos fragmentada; as cenas-sonhos deixaram de ser lampejos e conquistaram alguma autonomia, conseguindo, em seguida, algumas correlações. Esse pequeno avanço pelas estradas escuras de David Lynch permitiu que eu conseguisse tatear Cidade dos Sonhos minimamente na redação da segunda fase.
Dessa escrita, não lembro detalhes, só que me esquivei daquilo que me horrorizara e estruturei o texto a partir do oposto, do estranho encanto daquele clube de veludo vermelho e luz azul, ocupado pelo grito/canto “Llorando”, aquele que segue mesmo quando não há banda. Acho que falei em epifania e no duplo entre vida e morte. Imagino ter falado também da aparição do cubo aniquilador, que faz desaparecer Rita e nos engole, sem deixar claro se é ou não caixa de Pandora, tampouco se liberta ou se aprisiona o mal (elas? nós?).
Aparentemente, foi o bastante (mesmo, em outra questão, tendo trocado os tecidos e rebatizado Veludo Azul para Cetim Azul). De lá para cá, homens elefantes, bebês-vermes, orelhas e outras bizarrices estiveram ali e aqui, vivendo esse cinema no qual a vida é o sonho da forma e da falta, e o pesadelo da falta e da (dis)forma. É por essa escrita turva, de imagens e palavras que desabam pelos abismos do inexplicável, que Cidade dos Sonhos figura anualmente em minha disciplina de roteiro. Se as artimanhas entre dramaturgia e narração priorizam sistematicamente o desejo, Lynch desvia da mina que aflora para lançar-se ao poço da contraparte — tudo aquilo que está no poço, recalcado e que, mesmo se vier à tona, não encontrará lógica, porque é de outra ordem, de outro mundo.
Talvez a imagem-síntese do cinema de David Lynch seja a da insuficiência dos faróis sobre o asfalto escuro em Estrada Perdida (que encontra similar em Cidade dos Sonhos). Dela, me vem à cabeça a citação de E. L. Doctorow, comparando a escrita de um romance com dirigir à noite — “Você não precisa ver onde está indo, não precisa ver seu destino nem tudo o que encontrará pelo caminho. Você só precisa enxergar alguns metros à frente”. É uma ideia que cabe ao cinema de Lynch, mas não como um infortúnio com o qual se tem que lidar, e sim como uma escolha consciente de que aí está o acesso às curvas sinuosas de caminhos subconscientes. Antes de se interessar pelos jardins que se bifurcam, Lynch acredita nesse caminho que desce às profundezas, força motriz à criação dos jardins e demais bipartições. Como cineasta, seu papel é apontar uma luz, mesmo que o foco seja curto, esguio. Melhor que seja: só assim, o mistério maior — aquele que não é mistério, já que nos é sabido, comum e incontornável — permanece incógnito, nos olhando sem que precisemos encará-lo de frente; só de soslaio. Silêncio. Só assim a escuridão pode se manifestar com paradoxal clareza, atirando diante dos faróis o desconcertante, o inesperado, o cósmico, o espectral… Aquilo que pode ser tudo. Ou nada. Mas que vive, mesmo sem banda, no cinema de David Lynch.