Lost: 15 anos depois

por Álvaro André Zeini Cruz

Dizem as redes sociais que Lost terminava há 15 anos. Lembro bem daquelas noites em polvorosa na pós-graduação em roteiro, com nossa atenção capturada por especulações acerca da série de Damon Lindelof, Jeffrey Lieber e J. J. Abrams. Exibido em 23 de maio de 2010, um domingo, o episódio desembarcou por aqui, de alguma caravela online, no dia seguinte; se não me falha a memória, para nossa turma de roteiro, o último limiar à ilha foi a aula do Tiezzi. O reencontro, na quarta-feira, serviu para que Reinaldo Cadernuto destrinchasse, em sala, o series finale; até porque não havia outra coisa a se fazer — só se falava em Lost.

Minha queda na ilha se deu por linha nacional; especificamente, pela tela da Globo, que, numa noite de domingo de praia (derradeiras férias entre ensino médio e faculdade), levou ao ar a série que, já se sabia, era uma febre. Desde o piloto com acidente aéreo, Lost se tornou inescapável. Pior, capturou-me por toda a graduação, ensinando disciplinas como “migração da TV aberta ao cabo” (adentrei a escotilha pelo AXN), seguida por “introdução à navegação em águas torrentianas”. Eram os primeiros anos de um novo milênio em que, independente do sucesso, as séries demoravam meses para chegar à TV por assinatura e mais ainda aos canais abertos. A internet banda larga não era muito mais rápida; lembro que a “encomenda” dos episódios se dava por volta da meia-noite, e a entrega, num RMVB duvidoso, acontecia lá pelas seis da matina (o que garantia um mínimo de sono antes de explorar a ilha; quando a ansiedade permitia).

Assim, amei e odiei Lost em muitas telas. Do primeiro acampamento (na TV de tubo), passando pela descoberta da vila dos Outros (no LCD de um desktop) até chegar ao ponto final (num notebook, cujo monitor começava a falhar), amei odiar Lost de várias maneiras, por inúmeros motivos: pelos personagens menos gostáveis; pela construção narrativa que, vira e mexe, metia um episódio de Sun (Kim Yoon-jin) e Jin (Daniel Dae Kim) ou de Claire (Emilie de Ravin), quando esperávamos alguma resposta ou conclusão climática; pelos enigmas nunca solucionados (ainda hoje, me pego pensando no pé monumental com quatro dedos, revelado no desfecho de uma das temporadas). Uma vez, passando pela vitrine de uma Livraria Curitiba, dei de cara com O Terceiro Tira, de Flann O’Brien, com a pegadinha anunciada — “o livro que aparece na escotilha de Lost”. Comprei, achando que desvendaria todos os mistérios que Jack Shepard (Matthew Fox) tentava entender pela razão, e John Locke (Terry O’Quinn), pela fé. Segui sem decifrar a série, com o acréscimo de não entender o livro.

Mas o que havia de tão magnético em Lost? (digo, além do campo que causou a queda do Oceanic 815). Bem, havia essa micro sociedade, feita de personagens que nos enlaçavam pela afeição (Hurley, Saiyd, Desmond) ou pela intriga (Juliet, Danielle Rousseau, Mr. Eko, Benjamin Linus), todos devidamente revelados em fragmentos, entre flashbacks e flashfowards. Também os plot twists, que não contentes em revirar a história, a escalavam, dobrando a aposta para nos deixar boquiabertos. Às vezes, personagens queridos e plot twists se interseccionavam, formando um gancho calculado para nos nocautear durante todo o hiato entre temporadas; assim foi com “not Penny’s Boat”, palavras finais da jornada redentora de Charlie (Dominic Monaghan), transformado, pela ilha, em bom pai. Essa conjugação, aliás, é reveladora: Lost é dessas séries que conseguem um raro equilíbrio entre estudo de personagens e experimentação narrativa. Não à toa, talvez seja a última grande empreitada dramática da TV aberta estadunidense nas narrativas complexas, em um momento anterior aos streamings, quando essas emissoras ainda tentavam competir com as elaboradas produções dos canais pagos (bons tempos). Entre as movimentações (espaciais e temporais) da ilha, era possível, vez ou outra, vislumbrar as engrenagens narrativas, admirar o funcionamento dessa máquina (como propõe Mittell em sua ideia de complexidade narrativa). No entanto, essa admiração estruturalmente reveladora logo nos catapultava de volta ao coração da diegese, nos demandando a tarefa do pacto ficcional, aquela que Noël Carroll chama de “imaginação supositiva”. Então, estávamos de novo especulando — e transmediando — sobre mistérios que, o cinema e a TV nos ensinaram, serão respondidos. Mas Lost nunca prometeu isso; desde o título, anunciou que estaríamos perdidos no meio e no fim.

Se a disputa que atravessa a História da Humanidade é deflagrada no microcosmo da ilha, o começo esconde outras perguntas a bordo do avião: quantas vidas cabem nessa geringonça que corta o único mundo que conhecemos? E quantos mundos cabem em cada uma dessas vidas deslocadas, instantaneamente convergentes? Como será o encontro entre esses seres e as existências que carregam nas bagagens, e como será a colisão com o que existe, mas não necessariamente se materializa, cuja forma é justamente o impalpável, o enigma? Nessa ilha, a ciência de Jack chega até certo ponto, porque não se trata de um espaço restrito às resoluções pragmáticas de problemas de pesquisa isolados; a filosofia do homem homônimo a outro filósofo também tem seus limites, e cabe ao John Locke da série entender que o empirismo deve também aceitar a experiência inexplicável, a existência invisível. Se todo homem é uma folha em branco, a escritura das linhas pode se dar tanto nas relações terrenas quanto pelo sobrenatural. O debate espiritual entre Jack e Locke se triangula numa disputa física com Sawyer (Josh Holloway), impondo a essa amostragem de uma aldeia global uma vivência tribal, negociada entre crença, razão e instinto, moedas de troca para a sobrevivência.

O fascínio que tornou Lost um fenômeno vem muito dessa mitologia intrincada, que articula variações arquetípicas às formas genéricas — externas (estilísticas) e internas (narrativa) — da aventura, da fantasia e da ficção científica. O embate entre luz e sombra, bem e mal, se escamoteia sob teorias da conspiração envolvendo empresas (a Dharma), governos e até a possibilidade de forças extraterrestres. Entretanto, conforme a série vai se aproximando do fim, a redução disso tudo indica um mundo contemporâneo em que as cartas se embaralham entre coringas, talvez porque as placas tectônicas do embate ancestral não fossem assim tão distantes. Jacob (Mark Pellegrino), o protetor da ilha, desejava permanecer nela por uma crença de que não havia outros mundos, ou de que não valeria desafiar o destino; já o irmão não nomeado — depois despersonificado no monstro da fumaça — desejava partir porque acreditava em terras além do oceano e porque ansiava por escrever o próprio destino. A curiosidade desponta como desdobramento da crença, e é a partir desse binômio que o bem e o mal se articulam em Lost; a fé, supostamente benéfica, faz nascer a dúvida, em todas as suas ambiguidades e nuances — essa coisa chamada Humanidade. A ilha é essa caixa de Pandora quântica, cujas matérias-primas vitais transbordam e invadem limites de espaço e tempo. É a ilha que detém a fonte da luz que cega (e que, segundo Jacob, está dentro de todos os homens) e que produz a sombra monstruosa, que lampeja imagens e toma forma de corpos (mal desformado em eterna busca da forma, cuja essência necessita de existência).

Quando encontra a ossada do homem sem nome ao lado da mãe de criação, Locke os batiza de Adão e Eva (ainda que uma leitura edipiana seja possível). Mais tarde, é o corpo de Locke que o monstro (para Locke, Adão) possui. Adão, portanto, é uma conjugação de fé, curiosidade e mal. Na empreitada final, é Hume (Desmond, não David) quem esgota a luz para que a escuridão ganhe liberdade e finitude no corpo da contraparte de nome filosófico. Batizados como dois filósofos iluministas, Locke e Hume criam um instante de escuridão para que a luz volte pelas mãos do homem da razão, convertido a uma fé que já se anunciava — Jack Sheppard (pastor), filho de Christian Sheppard (Katie zomba do nome, no último episódio). A ilha, lugar em que o sacro e o profano se conjugam pelo natural, é entrecortada pela igreja, arquitetura do sagrado racionalizado, social.

Controverso, o último episódio de Lost pode ser acusado de muita coisa — falta de tempo no desenvolvimento, desonestidade na plantação excessiva de pistas e intrigas não recompensadas —, mas não de inconsistência pactual ou inverossimilhança temática: entre parábolas cristãs e figuras messiânicas, a fé sempre foi uma peça fundamental nesse tabuleiro. Não é à toa que os flashes if, que configuram uma “vida-purgatório” em toda a temporada final, culminam naquela capela inter-religiosa (mas com arquitetura tipicamente cristã). Essa vida, criada para que se reencontrassem e seguissem, é ilustrada na imagem final desse paraíso recém-reconstituído, em que permanecem as relações e apagam-se os embates, os sofrimentos, as dores (por isso mesmo, Jack cura Locke). A igreja iluminada, que abriga aquela pequena comunidade (agora completamente harmoniosa), é a antítese da vinheta de abertura, que insistentemente nos lançava no vácuo entre as letras do título. 

“Lost”. Título de uma só palavra, que se restringe, portanto, à unidade comunicacional mínima; ao conjunto de fones que se constituem em fonemas e, depois, em representações gráficas, ordenando-se para representar algum sentido. O sentido, no entanto, é não haver sentido: durante seis temporadas, o título, delineado e preenchido em branco, pairou sobre o fundo preto infinito, como se aquela pequena junção de quatro letras fosse uma exceção lógica em meio ao nada. A palavra flutua em nossa direção e, conforme se aproxima, revela um bug, um ruído de renderização mantido, que faz vacilar os contornos de algumas letras. Então, “Lost” some, e o significado ecoa — apesar de perder seu significante — na não representação, na inexistência da língua ou da linguagem, no mais absoluto nada. A vinheta simplória se contenta em apresentar a palavra como uma ilha-mensagem, mínima estrutura da língua e da linguagem para que nós, humanos, não permaneçamos à deriva, perdidos. Se nenhum homem é uma ilha, é porque a linguagem organiza a humanidade nesse arquipélago flutuante entre fé e razão. Assim, Lost termina com uma transmutação da máxima sartriana: o inferno não são os outros, até porque, talvez, eles sejam, justamente, o oposto — o céu, a salvação. Ou, pelo menos, o atenuante do verdadeiro inferno: a própria vida como ato doloroso e inescapável de, a um só tempo, ser e existir.

Lost nos desorienta: começa pelos corpos para ir ao encontro da perdição das almas, e, por fim, aos reencontros entre os pares, binômios e dicotomias.