por Álvaro André Zeini Cruz

“— Meu Deus — disse ela —, olhe o cabelo dele! Como fica esvoaçando”.
A imagem dos cabelos esvoaçantes de Mike no carrossel voador — observados pela mãe Annie — surge na parte final de Joyland para embasbacar-nos de dentro para fora: da voz encantada desta mãe, que assiste as últimas alegrias do filho, aos olhos externos, leitores, meus (no caso), trepidantes a bordo da escuridão de um Expresso de Prata. Não, o ônibus não passara por nenhum desnível na estrada; era eu que havia me deparado inesperadamente com a imagem-tema desta roda-gigante de Stephen King.
“Os jovens crescem, mas os velhos só ficam mais velhos e mais seguros de que estão certos”.
Joyland traz as memórias de Devin, um narrador-personagem que conta o longínquo verão de 1973. Aos 21, e com o coração partido, Devin aproveita as férias universitárias e parte para um trabalho temporário no parque que intitula o romance. Lá, vive encontros (e os desdobramentos naturais destes — os desencontros), como com o casal Tom e Erin, que se conhecem ali para acompanharem-se até que a morte de um deles os separe. Mas Devin, o amigo, separa-se antes, ao menos fisicamente; quando o verão acaba, ele decide continuar trabalhando no parque, moribundo até a próxima estação (ou até a Disney levá-lo à falência). Devin, que tem a “alma de parque”, permanece como um sopro de vida nesta Terra da Alegria quase inoperante, ocupada pelos poucos funcionários fixos e pelo fantasma que habita uma das atrações.
Sim, há um fantasma no trem fantasma de Stephen King, que, entretanto, faz deste a única atração de horror do parque. Vista por Tom — o mais cético do trio de amigos —, a assombração da moça assassinada nos trilhos é um horror conhecido, praticamente concretizado na arquitetura confinada do brinquedo. Contudo, há outros horrores em Joyland, menos palpáveis. Porque, como no mundo, o horror se dissimula e, por vezes, demora a se desvendar.
“Tentei muito acreditar quando eu era criança, mas não consegui. Deus e o céu duraram uns quatro anos mais do que a fada do dente, mas, no final, não consegui. Acho que só tem escuridão. […] Esquecimento”.
Nesse sentido, há uma reciprocidade entre o parque e o mundo: entre dispositivos dispostos a ocasionar o riso, a adrenalina ou o deslumbramento, há uma ponta inevitável — e inexplicável — do horror, palavra cuja etimologia remonta a externalização corpórea de algo que borbulha por dentro — o medo. Para que esse parque-microcosmo seja posto em operação, é preciso alma, seja a de Devin ou de Howie, o cão feliz, ambos salvadores de meninas engasgadas, velhos infartados ou de um Mike excessivamente consciente da própria (e próxima) finitude. Em uma Terra em a existência é atrelada ao desaparecimento, à morte, não é possível uma Terra da Alegria sem que haja buscas, encontros e suor.
“— Agora sei como minha pipa se sente”.
Mas esse livro de parque de diversões é principalmente sobre a compreensão de que entre movimentos, tudo é relativo e passageiro. Em Joyland, aquilo que é do mundo que não nos habita é rarefeito e volátil. A partir desse entendimento, Stephen King escreve sobre os encontros não como proximidades táteis ou permanências físicas, mas como colisões imateriais e com tempo indefinido, capazes de criar cicatrizes na memória. Apesar de impalpável e limitada, para King a memória sim é matéria, se não concreta, real, composta em placas tectônicas movediças, com fendas prontas a jorrarem sons e imagens das atrações (e dos Bobs, como são chamados os visitantes de Joyland) do mundo, só que impregnadas do eu — “quando se trata de passado, todo mundo escreve ficção”.
Se o clímax chega sob os ventos de uma tempestade tropical — e “no topo, onde o ar é pouco e a vista é coisa de louco” — para pontuar a investigação (postergada e quase lateral) do assassinato assombrado, é simbólico que os mistérios de Joyland rondem os movimentos aéreos, a começar pela ventilação da alegria — a inspiração e expiração aumentadas do riso, a lembrança da voz arejada pelos cabelos ao vento. Neste Stephen King, Jesus é a pipa de um menino com pulmões enfermos, mas ansioso pelos últimos risos antes da certeza absoluta: a de que os corpos, sem exceção, voltarão às cinzas, ao pó que desaparecerá sob a força invisível do vento. Pois neste King, o grande mistério não é a fantasmagoria, mas essa substância que nos cerca enquanto caminhamos ou vagamos, aquilo que nos preenche, nos envolve ou nos atravessa com mais ou menos fôlego, até o derradeiro mistério, o único que também é certo.
“Mas, cedo ou tarde, o último momento feliz chegaria. Chega para todo mundo”.