Jogo das decapitações

por Álvaro André Zeini Cruz

(este texto não é sobre o filme homônimo de Sérgio Bianchi)

“Agora seremos felizes”, de Vincente Minnelli
“Paisagem na neblina”, de Theo Angelopoulos

O diabo mora nos detalhes, e os detalhes, às vezes, teimam em se esconder. Agora seremos felizes, de Vincente Minnelli, é um dos meus filmes favoritos e, por isso, companhia recorrente em minhas aulas. Enquanto a cena do jantar aparece para debatermos a complexidade da mise en scène que coreografa a numerosa família à mesa, a reconciliação ao piano (you and I, forever, together) e Jude Garland cantando Have Yourself a Merry Little Christmas explicitam o poder simbólico do melodrama. Mas se o melodrama é o gênero visual por excelência, como defende Laura Mulvey, essa visualidade excessiva também escamoteia, mantém latentes pulsações que ficam à espera de que o olhar retorne para esmiuçar a superfície, que tudo revela, mas nem tudo evidencia. 

Parte do assombro que o cinema provoca está justamente nessa capacidade de um filme familiar (sobre o qual já escrevi, inclusive) ainda guardar pequenos segredos, desses que subitamente despontam e desconcertam, nos levando a uma espécie de autorrecriminação – como não vi isso antes!? Ocorreu-me dia desses, quando, ao exibir a canção-clímax de Garland (e a decorrente decapitação simbólica da família de bonecos de neve), descobri um detalhe: que um único plano – o ponto de vista da janela, que introduz os bonecos – carrega, na distribuição de corpos e cores, toda uma narrativa antecipatória. Isso porque a janela lança uma luz amarelada e acolhedora sobre o quintal, mas o conforto dessa luz é esguio, recortado; recai apenas sobre parte do boneco caçula, enquanto os demais são relegados ao azul invernal. Essa figura parcialmente abençoada é a representação da menina Tootie, a única não resignada com a mudança dos Smith, que, por causa da carreira patriarcal, trocarão St. Louis por Nova York. Por isso mesmo, é Tootie quem, num arroubo de fúria, “mata” a família ao destruir os bonecos, num gesto genuíno que acaba comovendo o pai (e o demovendo do plano). Isso tudo, porém, é antecipado pela luz, que divide o espaço cênico e expulsa a família desse lar-paraíso, possível apenas em St. Louis. Agourenta, a vista gélida dos bonecos azulados interfere no olhar da brilhante (literalmente) Jude Garland, que oscila do ressentimento (quando direcionado quintal) à prece (quando direcionado ao alto). Se o melodrama em Agora seremos felizes é progressista no happy end que sabota o plano patriarcal em prol da vontade das mulheres da família, não perde seu caráter cristão, uma vez que o ato simbólico de Tootie, embora radical (e potencialmente trágico), promove uma espécie de milagre natalino.

Numa dessas curiosas coincidências, a “decapitação” como motivo visual emergiu na tela numa das aulas seguintes; e a escolha pela palavra “emergiu” se dá pela forma como essa morte – não de um boneco de neve, mas de um cavalo – se concretiza na imagem. A cena apareceu por acaso, porque permiti que Paisagem na neblina, de Theo Angelopoulos, se desenrolasse para além do trecho planejado, chegando ao “degolamento” do cavalo. A amputação não é literal (como na famosa cena de O Poderoso Chefão); como em Minnelli, é simbólica, mas não só, uma vez que na camada denotativa, a morte se consuma de fato. Já na camada simbólica, é uma decapitação que extrapola a diegese, pois é efetivada por um elemento estilístico no olhar desse narrador onisciente, isto é, a margem inferior do quadro cinematográfico. A cena noturna começa quando as crianças Voula (Tania Palaiologou) e Alexandros (Michalis Zeke) vagam pela cidade coberta de neve e são surpreendidas por uma noiva em fuga, que desponta na encenação em profundidade. Mais do que cooptada, essa noiva é abatida, levada a contragosto de volta à festa do casamento indesejado. Quando essa pequena morte em vida se conclui nas profundezas do plano (para retornar depois num festejo irônico), um trator cruza o quadro pelas laterais, descarregando na neve outro corpo agonizante – o cavalo. As crianças se aproximam do bicho; em seguida, o corte aproxima a câmera, que corrige verticalmente para acompanhar o erguer do pescoço do animal. Começa, então, o jogo da decapitação, com o plano centralizado nas crianças (no choro de Alexandros, principalmente), mas invadido pelo vaivém da cabeça do cavalo, que emerge e some pela margem lacunar do quadro. Se a angústia da noiva escoa no fundo da imagem até a pequena e civilizada porta de um edifício, a agonia do cavalo é laminada pela borda da janela, tornando vida e morte questões de campo e extracampo.

Distantes como Cinema, o melodrama musical de Minnelli e a austeridade do cinema de Angelopoulos se encontraram nessa sincronicidade dada entre plano de ensino, arquivos armazenados numa mesma pasta e uma boa dose de acaso. Ecoam nas infâncias e dores atravessadas por esses cortes simbólicos, decapitações que se constituem de maneiras diferentes. Se a morte figurada no filme de Minnelli é o prenúncio que resulta de uma prece (um ato de fé) para evitar dias menos felizes, no cinema desencantado e dessaturado de Angelopoulos, ela se dá duplamente; no interior da narrativa e pelo olhar que a vê, isto é, como composição formal nesse enquadramento-guilhotina. Duas cenas que, nas últimas semanas, articularam-se entre as derradeiras exibidas na disciplina de Direção; e, não, este não é um texto sobre o fim da matéria, tampouco sobre a morte de um professor de Cinema ou do próprio Cinema. Mas, é sim um texto que culmina na morte de um HD, esse tijolo tecnológico que engaveta tantas coisas, e que partiu sem aviso, levando consigo filmes acumulados ao longo de oito anos de sala de aula. Filmes que, em sua maioria, não são encontrados no reducionismo confortável dos streamings, mas que sobrevivem e circulam, apesar da morte homeopática das mídias físicas, da cremação das videolocadoras. É verdade que nos primeiros estágios do luto (negação, raiva, barganha), enfiei o HD na geladeira; talvez estivesse sob uma fé ingênua (à la Garland) de quem crê nas recompensas terrenas do melodrama ou nos passos finais da jornada do herói (a volta com o elixir, a ressurreição). Foi em vão, é claro; uma vez descabeçado, não há jeitinho (barato) ou apertão que recomponha o cabeçote, que desentale a agulha, que mova a memória. O jeito é passar logo à aceitação e recomeçar a coleção, não de VHS ou DVDs, mas de arquivos voláteis, neblina de dados propensos a se esvaírem, mas que, com sorte, insistem nas revelações até que haja a próxima perda, a próxima morte. Entre as guilhotinas, os filmes batem, relampejam, revelam. Movimentam a memória. Resta recomeçar, assim como recomeçamos os filmes em revisões reveladoras. Afinal, o diabo mora nos detalhes. O divino, também.