Jerichow

por Álvaro André Zeini Cruz

Thomas (Benno Fürmann) vê Ali (Hilmi Sözer) à beira de um precipício. Ali, por sua vez, olha o abismo e, nele, vê a esposa, Laura (Nina Ross), sentada à beira do mar. Ela e Thomas entregaram-se a um beijo ardente durante o curto tempo em que Ali subiu a encosta. Teria o marido visto o beijo? Por isso pensa em se jogar? O destino age antes e faz com que o solo arenoso cuspa Ali, que se agarra às raízes. Uma questão moral se coloca a Thomas: salvar o novo amigo e, consequentemente, o obstáculo ao romance recém-arrebentado ou deixá-lo despencar, jogando-se sem amarras numa trama de desejo?

A triangulação entre personagens e olhares suspende a ação, garantido que essa história seja não só de desejo, mas de desejo e morte. Thomas assiste o instante do acidente e Ali lutar contra a queda na encenação em profundidade. Em seguida, é Laura quem olha para o marido, mas logo se desvencilha em direção a Thomas, um ponto distante, mas firme, definitivo, contraponto ao que oscila dependurado. Bordeado pelo barranco, Thomas retribui demoradamente o olhar, vendo-a no contracampo, como uma presença distante, mas inteira, desimpedida, e, principalmente, que o encara de volta, sem titubear. A estabilidade rigorosa entre os olhares marginaliza ainda mais o que já está à margem, o vértice instável e frágil desse triângulo amoroso. Laura deposita em Thomas uma decisão. O corte no mesmo eixo retorna ao amante, rosto e pés firmes, mas que, enfim, disparam em socorro ao outro.

Há mais hipóteses do que respostas a essa ação: talvez o resgate se deva ao bom coração de Thomas (como o próprio Ali dirá adiante), mas pode ser que o amante tenha captado que o marido ainda era útil a ele e Laura. Fato é que o simbolismo e a conclusão dessa cena lançam o trio noutros abismos. Isso porque, para Christian Petzold, o desejo em “Jerichow” é uma força que surge parar catapultar os corpos ou obrigá-los a saltar. Noutra oportunidade, mal o marido sai de cena para que o sexo irrompa a poucos metros, num corredor, com Thomas e Laura indo ao chão entre mãos mordidas para abafar as respirações. A marca da arcada dentária é a cicatriz do desejo, mas Petzold filma esse tipo de detalhe com um interesse meramente denotativo, o que o contrapõe ao registro feito por Claire Denis e “Desejo e obsessão” (outro filme que lida com a mesma dicotomia). 

Para Petzold, interessa o movimento, o desejo revelado nas transformações dos olhos e das bocas, expostas e visíveis mesmo à distância (menos para Ali, cuja cegueira é conveniente e sadomasoquista). Em “Jerichow”, o desejo está nas mãos que irrompem da sombra de uma árvore para puxar o outro corpo em direção a esse abismo imagético; está na resposta da mão que desponta do extracampo para puxar não só o corpo desejado, mas o olhar cúmplice da câmera. Diferente das outras adaptações de “O Destino bate à sua porta” (e digo isso num exercício de memória, sem revisitar os filmes de Visconti e Rafelson), em que a atração sexual era um jogo de negociações (avanços e recuos) que culminam num homicídio planejado, aqui o plano e o carro são coisas ressignificadas quase como piscadelas irônicas, pois este é um filme de corpos e de poros, fendas, placas tectônicas cujas erupções são orgânicas. Nesse sentido, para uma dessas figuras, não haverá outro caminho senão a antecipação trágica daquilo que é natural – a morte, que retorna ao cenário do primeiro impulso, do primeiro beijo. “Jerichow” é um filme sobre existências lançadas em sucessivos precipícios; o desejo como o abismo do corpo, a morte como abismo da alma. Saltos incontornáveis; faces de uma mesma moeda.

Em cartaz no MUBI.