Isto não é um cavalo. É Caramelo.

por Álvaro André Zeini Cruz

Isto não é um cachimbo, nos diz a obra de René Magritte ao retratar o objeto como gravura, lembrando que a representação não é apresentação do objeto/corpo em si, mas um substituto, no caso, desenhado, icônico. Da mesma forma que o famoso meme do cavalo, cujos traços vão se transformando no decorrer da ilustração, faz graça com as possibilidades da representação — das patas traseiras realistas à cabeça em linhas infantis, a imagem do cavalo se transmuta do regime do olhar à imaginação. De um ponto a outro, permanece representação.

Desde quarta-feira, a cena do cavalo ilhado no telhado esteve em looping nas telas, causando comoção. Não se trata de uma representação icônica, mas indicial, já que a imagem-câmera tem esse poder de representar um indício do mundo; e a imagem ao vivo, de mostrar que esse indício continua ali. Isto não é um cavalo porque é uma imagem, mas é um cavalo porque se trata da imagem-produto de um olho eletrônico, que estende o humano na impossibilidade de todos os olhos humanos estarem ali. Representação em tempo real da situação comovente, porque essa capacidade de reproduzir e recortar existências — o cavalo, o telhado, a água — faz da imagem esse registro capaz de mover conjuntamente olhos e corações. Tudo isso posto reiterativamente na tela fundadora da aldeia global.

Margot, minha vira-lata, que tem o costume de latir para os bichos na TV, reconheceu a representação do cavalo, mas sua cognição animal — que a fez latir com veemência para o pobre Caramelo — não decifrou esse efeito indicial do mundo, nem a retenção da tela; para ela, o cavalo poderia transpor o limiar de LED e vir parar na sala (o que seria um problema, dado o tamanho do apartamento). Em sua inteligência animal, Margot entende o cavalo decodificando-o como o corpo real, mas não compreende a situação angustiante, pois esta demanda a interpretação humana, essa capacidade que, nos melhores casos, tem produzido ondas de alteridade, altruísmo e generosidade país afora. Ou seja, tem reproduzido humanidade.

A incompreensão de Margot é resguardada por sua natureza canina, mas uma ignorância da imagem como representação tem se mostrado reincidente em seres humanos. Numa contemporaneidade em que as imagens já são capazes de nascer de uma inteligência maquínica/algorítmica, perde-se a noção da imagem como re-apresenteção — indicial, icônica ou simbólica — do mundo em si, priorizando-se uma correlação entre imagens e conceitos; sendo que, estes últimos, são tratados como decifrações relativas cada vez mais maleáveis às conveniências individuais. Nesse sentido, as imagens replicam-se entre urgências e banalidades escorregadias, tornam-se cascas de bananas, estratégicas para uns, escorregões (plantados ou atos-falhos) para outros (surge também a dificuldade de diferenciar escorregões estratégicos ou estratégias escorregadias). 

E quem diria que o Twitter, que José Saramago já antecipava como uma descida ao grunhido, se tornaria essa linha ensaboada (por um bilionário) onde escorregam tanto a fisicalidade dos dedos quanto a representatividade das imagens e palavras? É nessa virtualidade de representações-armadilhas que se concatena uma disputa a partir das imagens: de um lado, as que tocam corações; do outro, as que tomam fígados. Entram em cena os influenciadores, essa “profissão” atualíssima, cuja etimologia remonta “correr, deslizar, movimentar para dentro”. É bastante evidente que vivemos tempos em que esses humanos-imagens, construídos em talking heads verticais, deslizam azeitados mentes adentro, ainda que isso demande o trabalho de empurrar “conteúdos” quase que goela abaixo. Mais importante: em fluxo contínuo, sem que, na maioria das vezes, haja o hiato da racionalização, esse processo cognitivo que pode — e deveria — injetar responsabilidade sobre a produção imagética. É nesse (des)ínterim, onde o conteúdo é mais fruto da digital (do dedo) do que do cérebro, que se passa a encarar a imagem não como índice, mas como processo de mitose (de “0 e 1”) e retroalimentação basilar de um mundo codificado a qualquer custo.

Nessa oposição, há os que viram a imagem-câmera do cavalo e a interpretaram como aglutinação simbólica de uma tragédia concreta, de algo que, aliás, é inegável aos que não estão naufragados sob a imaterialidade das imagens e a névoa doutrinária — a ação humana sobre o mundo físico tem concretizado o que antes era apenas simulado no cinema apocalíptico. No entanto, há esses que encaram as imagens como brecha à produção de outras, que articulam à comoção pelo cavalo ilhado ao meme (essa anti-charge) de uma mulher lavando roupas à beira de um córrego. Não uma mulher qualquer, mas uma cujo corpo é preenchido pela face transplantada de outra influenciadora, uma deep fake tosca, cujo humor (igualmente tosco) costura o rosto da celebridade (sabidamente rica) a um corpo possivelmente pobre. Pouco importa se qualquer uma dessas mulheres existem no mundo concreto: para o meme, essa virtualidade-sintoma de um tempo de educação e trabalho precarizados, são só imagens, ainda que a piada se alicerce em abismos (sociais e de gênero) muito reais.

Não quero aqui diminuir a importância das ações e doações que este e outros influenciadores têm feito; prefiro encarar/acreditar nas pessoas como Edgar Morin nos ensina, isto é, pela complexidade (que carrega, inclusive, a contradição). Complexo é também o caso do cavalo Caramelo; para além da comoção importante e simbólica em torno do resgate, não se pode deixar de perceber uma espetacularização problemática, que poderia ter saído do controle e pela culatra, gerando mais ruídos. Mas estes não são pontos centrais aqui: o objetivo deste texto, escrito no calor do momento, é assinalar essa disputa no campo imagético, que, como já bem apontaram outros, traz de volta um senso de identidade para além da superficialidade das cores da bandeira e do Hino Nacional, retomando um tipo de imagem que, até pouco tempo, era deslegitimada e desinstitucionalizada — a da solidariedade, essa fraternidade que supera o púlpito da caridade; que, pela identificação, nos iguala como seres humanos e sociais.

No outro lado, a visão-vício da imagem como oportunidade a qualquer custo, seja ao ataque — caso dos jornalistas achincalhados no exercício da profissão; faces dadas à tapa pelos donos das mídias (hoje, jornalistas que não tem posição de chefia deveriam pedir periculosidade) —, seja no sentido capitalista e liberal predominantes: a imagem como engajamento pela enganação, pelo discurso conscientemente elaborado às demandas de desinformações e dissonâncias coletivas nichadas. Não me parece à toa que, nessa história toda, a guerra pelo cavalo tenha contraposto a televisão generalista — essa tela que, com seus inúmeros problemas e defeitos, é minimamente congregadora na grade de programação — e as telas móveis, propícias ao deslizar do on demand vicioso e ansioso, promotor de desgastes algorítmicos entre aldeias — não mais uma global, mas nichadas, ideológicas, ao gosto dos fregueses (inclusive dos piores).

Antes mesmo dessa controvérsia com Whindersson Nunes, chegou-me ontem um relato de sala de aula: “você acredita que os meninos estão numa de mandarem as meninas arranjarem louça para lavar?”. A réplica que Nunes enfiou a fórceps numa postagem sobre o resgate do cavalo é, ao mesmo tempo, matéria-prima e sintoma social desse velho machismo em tom de “brincadeira”, espalhado agora na velocidade de TikToks. Este e outros influenciadores — e também usuários não-influenciadores —, talvez nem se deem conta, mas deslizam essas imagens-discursos tão rasas quanto escorregadias, que são/serão internalizadas e replicadas noutras imagens, mas também — e principalmente — em comportamentos atuantes sobre o real. Talvez a grande questão acerca das imagens contemporâneas seja essa: a representação não é o cachimbo, o cavalo, a lavadeira, a Jade Picon, o que não significa que o cachimbo, o cavalo, a lavadeira e Jade Picon inexistam. A representação existe a partir de uma referência, de uma existência.

Depois de televisionarem um cavalo ilhado nas enchentes no Rio Grande do Sul, decobriu-se que o cavalo tinha nome (e, provavelmente, laços, afetos). Um cavalo que Margot, com sua inteligência animal, reconheceu como o cavalo. Isto não é um cavalo; é o cavalo. Caramelo.