por Álvaro André Zeini Cruz

Entre flertes fatais, Ingrid Bergman é cooptada por Cary Grant para uma missão no Rio de Janeiro: sua personagem, Alicia, é filha de um nazista condenado e, para não ter o destino do pai, junta-se ao agente do governo americano para desbaratar uma corja de outros nazistas, refugiados entre retro-projeções da cidade maravilhosa.
A tarefa de Alicia é se aproximar de um sujeito que ela já repeliu outras vezes: Claude Rains (Alexander Sebastian), que se deixa levar com um pé atrás, o que instala uma sensação de perigo iminente desde o princípio. Rains desconfia dessa persona subitamente apaixonada que Alicia compõe para seduzi-lo, enquanto ela própria enfrenta um jogo de atração e repulsa com o parceiro, Devlin (Grant).
Entre beijos devidamente ensaiados para que se tenha os melhores ângulos de Grant e Bergman, Alicia diz que “é um caso de amor estranho”, porque ele não a ama; a disjunção é posta, porque Devlin mal consegue falar ao telefone de tão entregue que está. Na volta, o jogo vira quando Devlin lembra que Alicia é uma sedutora contumaz e revela que essa característica será central aos serviços que ela prestará ao governo americano. Alicia tenta tirar dele, “o homem dos sonhos”, uma palavra de afeto, mas Devlin fala de negócios. No campo e contracampo, sob o crepúsculo carioca em back projection, Alicia perde a batalha para o rosto-esfinge de Grant, e é justamente por uma esfinge decorativa que ela passa antes de mergulhar sob a névoa de uma cortina, cenografia que ativa a difusão de seu sofrimento.
O cenário em que o plano é posto em prática é um parque de diversões hitchcockiano: das portas inúmeras e indecifráveis, cuja guarda das chaves permanece com Rains e sua mãe, à escadaria majestosamente à espera de uma queda, a mansão é um labirinto de visualidades que, paradoxalmente, abriga o olhar sempre certeiro de Rains. Além dele, há a mãe, a velha que pariu um nazista porque, provavelmente, pariu o nazismo; Madame Anne Sebastian (Leopoldine Konstantin) é dessas personagens que provocam calafrios enquanto destila seu sadismo entre o vai e vem da agulha do bordado. É também nessa casa em que está o McGuffin nuclear — segundo Hitchcock, concebido quando se tinha apenas uma pista sobre a bomba atômica —, atrás da porta que tem na fechadura a palavra “única” — a pista está dada. Sob o deadline das garrafas que se esgotam no gelo, a descoberta dessa adega, onde as botelhas não guardam bebida, leva ao contragolpe do café envenenado em xícaras que atraem a câmera, até que a última sobreponha a já adoentada Alicia como um monolito. Sob o efeito da bebida batizada, os nazistas se tornam uma dupla de silhuetas borradas, cujas sombras cercam e tomam o olhar e a consciência da protagonista.
Da descoberta ao desenlace — dilatados por certa inaptidão do mocinho —, um novo suspense se abre, pois o resgate de Alicia pode revelar que Rains deixou-se seduzir por uma agente dupla, e nessa pequena corja de nazistas refugiados nos trópicos, um está a espreita de devorar o outro. Em Interlúdio, o golpe final não é um tiro, mas o dedo de Grant deslizando firme até a trava do carro, deixando Claude Rains com a condenação no rosto, à mercê de outra dupla de nazistas que o aguardam à porta. Não são sombras, como as vistas por Alicia sob efeito do veneno, mas dois sujeitos tornados bastante concretos sob a luz; materializados o suficiente para fecharem a porta, cravando o fim do vilão e do filme.