Homens difíceis

por Álvaro André Zeini Cruz

No desfecho de Breaking Bad, Walter White (Bryan Cranston) confessa à esposa Skyler (Anna Gunn) que tudo o que fez, fez por si e por mais ninguém. É o término da jornada egocêntrica de um sujeito que, à beira da morte, conquista poder pela primeira vez na vida — e está disposto a tudo para não o perder, inclusive a sacrificar a própria família. Se para o químico do Novo México a família é uma desculpa-catapulta, para Michael Desiato, juiz de Nova Orleans e protagonista de Your Honor, ela é a razão genuína, ainda que se resuma ao filho e à memória da esposa. Assim, a ordem dos fatores — e de alguns valores — é outra; o produto, no entanto, passa de alguma forma pela série e personagem anteriores.

Cranston volta a uma trama em que o acaso rasga um abismo de erros, que se retroalimentam e se aprofundam sucessivamente. A diferença é que na série criada por Peter Moffat é sobre uma gestão de crise sem vislumbre de oportunidade: Desiato não começa como um professor com múltiplas falências, mas como alguém na ponta oposta, que já detêm poder — um poder institucionalizado que permite com que ele determine destinos. Ciente do que tem nas mãos, é um juiz justo, incorruptível, que saber que a justiça tem — ou deveria ter — um papel social, principal numa sociedade que não é igualitária. Esse caráter inicial será testado quando Adam, seu filho de 17 anos, atropela outro adolescente e foge da cena do crime. Rocco Baxter agoniza e morre no meio fio, mas seus irmãos e pais “honrarão” sua memória — não através da justiça oficial, mas daquela do olho por olho. Afinal, Jimmy Baxter (Michael Stuhlbarg) é o Walter White de Your Honor, com uma grande diferença: ele ama verdadeiramente sua família.

Começa um jogo de gato e rato entre esses dois poderes opostos (um regulamentado pela legalidade do Estado, outro, pelo dinheiro ilícito), o que não só dilui qualquer noção de justiça, como derruba os arredores onde a justiça toca e onde não toca. As ações desses homens brancos para protegerem seus filhos (homens e brancos) colidirão com vidas de garotos negros — e provocarão as mortes desses mesmos garotos. Como em Breaking Bad, a trama se expande da família à comunidade, passeando pelos bastidores dos poderes lícitos e ilícitos, mas, sobretudo, pelas nuances, pelos espaços de trânsito em comum onde corpos (e veículos) se chocam, deflagrando uma visibilidade a essas fronteiras urbanas.

É provável que Desiato tenha interessado a Cranston pelo conjunto de afinidades e distanciamentos que tornam Walter White um sujeito paradoxalmente próximo e distante. Novamente, ele vive um anti-herói cujo modus operandi é o de ressignificar a reação numa ação contundente a ponto de dissimular essa natureza de resposta, isto é, de simular a impressão de que é ele o homem quem dá as cartas. Mas se os movimentos de White lhe garantiam fôlego e força para dobrar as apostas, aqui o máximo que se tem é o atraso de uma tragédia inevitável. Nesse sentido, a simbologia da bola de baseball (convertida em dinheiro) não é gratuita; esta é uma trama de lançamentos e rebatidas, com bolas repelidas às vezes em parábolas, às vezes em linhas retas, às vezes rentes ao pescoço. E enquanto o jogo principal acontece, há peças que operam paralelamente para garantir que o labirinto se feche, que não haja para onde correr.

É nessa operação das peças laterais que Your Honor ainda deve se comparada à série de Vince Gilligan. É interessante que sejam duas mulheres da lei com questões étnicas e raciais — a detetive Nancy Costello (Amy Landecker) e a advogada Lee Delamere (Carmen Ejogo) — as personagens que cercam as mentiras em busca da verdade. Gina Baxter (Hope Davis), em contrapartida, aparece como uma matriarca promissora ao alinhavar racionalidade e moralidade a essa família de mafiosos, mas seu fervor religioso fica aquém do que poderia trazer à personagem. Adam, o filho-causa, é o personagem mais frágil — em todos os sentidos — porque seus movimentos são sempre irritantemente estúpidos, e, por isso mesmo, opostos a complexidade dos do pai, estes sim abertos às possibilidades e suposições. É provável que esse conjunto de tolices seja proposital para infantilizar esse filho e contrapô-lo justamente a Eugene (Benjamin Flores Jr.), o menino negro que, aos 13 anos, é obrigado a encarar mundos e submundos (ao passo que Adam como personificação do incidente incitante se mantém sob a proteção paterna). A escolha por esse contraponto temático cria complexidade a partir de um teste de paciência: os emaranhados de Your Honor são sobre esse pai e a proteção a um filho plano, que, mesmo com uma série de escolhas erradas, continua a ser, para ele, um “menino de ouro”.

Há, assim, uma simetria entre os filhos: Adam, o homicida culposo, e Carlo, o doloso. É para Carlo que o pai Baxter faz o nó da gravata, não para uma celebração ou conquista, mas para o júri em que ele é julgado pelo assassinato de Kofi Jones, o jovem negro em quem recaiu a culpa pela morte de Rocco. Quando Michael Desiato e Jimmy Baxter se encontram pela primeira vez, perguntam-se um ao outro: que tipo de homem é você? Diametralmente opostos, acusam-se e igualam-se num ponto de convergência: são homens que maleabilizam a justiça a partir de seus particulares, torcendo-a com as próprias mãos.

Se mais uma vez, Cranston se envolve numa trama em que o ilícito emerge do privado ao público para revelar labirintos sociais — o racismo estrutural e a corrupção institucional como principais aqui —, o que separa Your Honor de Breaking Bad, além da distribuição das peças, é uma compreensão profunda que preenche esses homens: para Walter White, a família era a desculpa perfeita, mas também a força que o puxava à mediocridade. Para Desiato e Baxter, seus meninos — por mais medíocres que sejam — são extensores deles próprios e apostas de que o poder ali permaneça, se perpetue. Por isso, esses pais creem que seus filhos merecem tempo para aprender. Por isso (e guardadas as devidas proporções que os separam), esses filhos têm seus crimes relativizados, tratados como erros. 

Por mais bem intencionado que seja o juiz de Your Honor, quando o poder ameaça escapar-lhe, ele atribui a culpa a quem historicamente é penalizado, trancafiado e assassinado pela sociedade. A segunda temporada — já lançada na Paramount — só se justifica se deixar o núcleo familiar para entrar de cabeça na comunidade, no social. Ou melhor, já se justifica, pois, de qualquer forma, há Bryan Cranston buscando nuances em mais um desses “homens difíceis*”.

* “Homens difíceis” é o título do livro de Brett Martin, que analisa um conjunto de séries que vai de Sopranos a Breaking Bad, todas protagonizadas por personagens masculinos que são expoentes das narrativas complexas.