por Álvaro André Zeini Cruz

Tragados pelos arranha-céus nova-yorkinos, Homem-Aranha (Tobey Maguire) e Dr. Octopus (Alfred Molina) são lançados sobre um meio de transporte que comunica, corre e corta a cidade na horizontal. Iniciada nas alturas, a luta prossegue sobre o teto do trem, mas o jogo de gato-&-rato rapidamente invade os vagões, ameaçando vidas comuns, desmascaradas. Então, Octopus decide dar trabalho ao herói com um revés cinematográfico: danificado por sua própria invenção, o Dr. despedaça os controles e impede a chegada do trem à estação. Como bem diz Luiz Carlos Oliveira Jr., começa o “espetacular combate entre a mecânica de um ícone da primeira revolução industrial […] e a performance enérgica de ferramentas mais flexíveis, multidirecionais, as teias que parecem se adaptar tão bem às novas leis de dinâmica da era digital”.
Atravessando da narrativa ao estilo, a passagem de Oliveira Jr. insinua o virtuosismo e a vertigem do CGI, essa imagem-espuma moldável, que Sam Raimi modela como poucos (Cameron, Zemeckis, Spielberg) porque prepara-a como espaço dramático e não como mero background. As teias lançadas por Peter Parker, agora sem máscara, passam pelas janelas do trem com o paralelismo dos fios elétricos que transitam informações, mas convergem no corpo do herói, transformado em freio. Quando o trem para, o primeiro vagão se inclina, deixando o herói à beira do abismo. Mas, do plongée que demonstra a técnica (e a tecnologia), vai-se ao mais simples dos planos: o detalhe das mãos que aparam o peito do herói e contornam a aranha-símbolo do uniforme.
Peter Parker é carregado por essas mãos, que o erguem de maneira messiânica, ainda que as mãos contrastem os olhares ternos e pasmos — he is just a kid. O heroísmo, então, se pulveriza entre os desmascarados; não o heroísmo vingador e equivocado dos Batman de Nolan, mas um heroísmo que protege, acolhe e crê, mesmo que a ausência da máscara cause alguma incredulidade. No retorno de Octopus, os passageiros, que simultaneamente descobriram o herói e o rapaz, colocam-se contra o vilão. Em vão, claro, mas é na construção desses planos-gestos marcantes que se faz o trilho da catarse em Homem-Aranha 2.
É essa compreensão que falta a Homem-Aranha: sem volta para casa, filme cheio de boas ideias, mas que quase nunca ganham consistência dramática. É boa a brecha aberta pela inocência do Menino-Aranha vivido por Holland, que, teimando em dar uma segunda chance aos vilões de universos distintos (e a concepção de multiverso é bem resolvida, sem excessos e sem ser incipiente), cava para si a tragédia de inúmeras perdas. O problema é que essa tragédia nunca chega à dimensão que promete, permanecendo submissa ao tom infantil desse Aranha-Peter Pan. Nesse sentido, a perda irrecuperável — a morte de tia May (Marissa Tomei) — não só acontece cedo demais na trama, com tem um design de cena ruim: o plot twist não suspende, nem surpreende, apenas cumpre os protocolos burocráticos para que as últimas palavras da pobre May ecoem as dos outros tios Ben, para que, adiante, os três Aranhas completem entre si o aforisma dos “grandes poderes e responsabilidades”. Aliás, é justamente essa a questão: a dilatação do começo do segundo ato tenta suspender a entrada dos heróis vividos por Tobey Maguire e Andrew Garfield e, quando isso finalmente acontece, o tempo é escasso para que as referências se tornem uma nostagia com corpo e alma. A comentada cena protagonizada por Garfield ilustra a fragilidade deste terceiro-terceiro Homem-Aranha: MJ (Zendaya) despenca tal qual Gwen (Emma Stone), só que, desta vez, o Aranha de Garfield consegue salvá-la. Seria uma grande cena se a emoção fosse feita no deadline dos trilhos passando e no disparar das teias, uma a uma, se o CGI fosse mais claro e pudesse dar a dimensão da vertigem, se houvesse planos e tempo em cada um deles para que a dilatação permitisse à referência transformar-se em drama de verdade. Além de uma evidente marvelização, o problema do Homem-Aranha de Jon Watts é a incompreensão de que catarse se constrói com trilhos e nós, não com arremessos – de trens ou corpos – isolados. Sorte que Sam Raimi estará à frente do próximo Dr. Estranho, e que sempre pode-se voltar aos Aranhas dele. Voltar para casa.
O texto de Luiz Carlos Oliveira Jr, publicado na Contracampo, pode ser lido aqui: http://www.contracampo.com.br/86/critaranha3jr.htm