por Álvaro André Zeini Cruz

No livro Redação Publicitária, João Anzanello Carrascoza chama de “ponto de partida” o uso de ditados e outros refrões populares assimilados e retrabalhados pela publicidade. Traz dois estudos de caso: primeiro, analisa o ditado “cai como uma luva” em peças impressas do produto de limpeza Veja e das meias-calças Lis; depois, recupera a máxima “dinheiro não nasce em árvore”, comparando uma reelaboração interrogativa em propagandas do grupo Abril e da empresa estadunidense Calavo Avocados. Em ambos os estudos, Carrascoza rejeita a probabilidade do plágio, defendendo os exemplos como coincidências alicerçadas sobre ditados e ideias universais (algo corroborado pela peça estrangeira).
Essa passagem do livro de Carrascoza me pareceu pertinente à polêmica envolvendo Fernanda Torres e a marca Havaianas, primeira tentativa pré-eleitoral da extrema-direita brasileira de retomar sua especialidade — terrorismo cultural, feito para arrebatar corações ressentidos e cognições de superfície, atravancadas entre o kit-gay e o bicho-papão. O case não demanda grandes apresentações: segundo o bolsonarismo e suas cercanias (aquele “centro” que se sentaria — e senta — com nazistas), a marca de chinelos de dedos estaria discursando contra a direita brasileira em seu filme publicitário de fim de ano. Tudo isso porque, na peça, Fernanda Torres deseja que o espectador/interlocutor comece um 2026 não com o pé direito, mas com os dois pés.
Convém começarmos pelo beabá (para o remoto caso de a acusação chegar a este texto). O que apontam como subliminar é, na verdade, explícito e explicado: quando Torres diz que não quer que o espectador entre 2026 com o pé direito, logo emenda — “não é nada contra a sorte, mas vamos combinar; sorte não depende de você”. Como nos ensina Carrascoza, temos, portanto, um artifício comum da redação publicitária, a evocação de um ponto de partida (o ditado “entrar com o pé direito”), que, por sua vez, deságua em outro, até mais contemporâneo, costumeiramente maleável entre a religiosidade e o liberalismo — “nunca foi sorte, foi… (Deus, trabalho)”. Vem, então, a antítese complementar: “o que eu desejo é que você comece o ano com os dois pés: os dois pés na porta, os dois pés na estrada, os dois pés na jaca. Os dois pés onde você quiser”.
Não fosse a parede de alpargatas ao fundo, o comercial poderia ser confundido com mais um daqueles que Fernanda faz para o Itaú, com valores liberais diluídos em discursos afetuosos de autoajuda, tudo isso embalado no acolhimento do olho no olho, na quebra da quarta parede. Isso porque os valores são os mesmos, e nem é preciso ir ao fundo do discurso para que se perceba: numa síntese, o que Fernanda diz é “faça sua própria sorte” ou “conquiste por méritos próprios” ou ainda “caminhe com coragem e com os próprios pés”. Poderia ser uma campanha de Don Draper em Mad Men, porque, em suma, o que se prega é “seja um self-made man / woman”. Mais capitalista, impossível.
Mas o fascismo tropical que nos rodeia está calçado; sabe que uma parcela de seu lead anda tão descalça de ideias que se apega a miragens. Nesse sentido, ainda que a meritocracia e liberdade sejam elementos discursivos demagógicos da extrema-direita brasileira, as acusações em 140 caracteres desviam desse valor quase pedagógico do comercial para trabalhar os efeitos ópticos de superfície, reduzindo as vistas (que não chegam a conjugar olhares) a uma expressão. Não é o caso de se criticar o roteirista (como vi por aí); o texto pode não ser dos mais inspirados, mas não se limita a insinuar suas ideias em brincadeiras discursivas; pelo contrário, as explica didaticamente, justamente para atenuar as possibilidades de ruído. A questão é que, mais do que nunca, o ruído vem do receptor da mensagem, ou melhor (na verdade, pior), é posto a ele a posteriori, incutido por interpretações virais de terceiros. Nesse contexto, uma vírgula pode ser apartada do todo e transformada em risco ou borrão por aqueles que, diabolicamente, sabem que basta pouco para distorcer vistas frágeis e leituras rasas. É o que acontece à expressão “entrar com o pé-direito”, ainda que, supostamente, a propaganda esteja em comunhão com valores daqueles que a atacam. Poderíamos lembrar, de novo, de Mad Men: quando Don Draper escamoteia os malefícios do cigarro com o slogan “It’s toasted”, também usa fumaça para turvar vistas, mas existia algum fogo, isto é, havia ao menos um dado factual (algo irrelevante, mas o bastante para desviar a atenção). No caso das Havaianas de Fernanda Torres, um bando de supostos “self-made men” delira em defesa do pé direito e do direito à sorte; provavelmente, a sorte dos que sempre a tiveram, que sabem que não depende de você (sabemos que, no Brasil, sorte não é passada pelo pé).
Faz-se um ato-falho: ao atacar o discurso meritocrático e liberal, a extrema-direita abre brecha para que se questione se esses valores lhe são ontológicos, se estão em seu âmago de fato, ou se não passam de mero simulacro discursivo. Essa rachadura, no entanto, não deve ser visível a quem se deixa hipnotizar pelo isolamento das palavras, sem considerar a polivalência que elas carregam ou o fato de que costumam funcionar em conjunto, em construções sintáticas e semânticas. Diante da crise deflagrada (e, injustificadamente, aumentada, inclusive pela imprensa), a marca deveria chamar Torres para um novo filme, desta vez, direcionado a quem viu, no anterior, propaganda comunista e ataque aos canhestros ideais destros. Nesse novo vídeo, Fernanda olharia nos olhos desse espectador, desejando, do fundo do coração, que ele comece 2026 com o pé direito. Porque a quem cai em um rage baiting dessa profundidade, só resta mesmo desejar sorte em outras esferas, para além da cognitiva.
ps.: dedico este texto a todas as professoras e professores de português que tive ao longo da vida.