por Álvaro André Zeini Cruz

Garota do momento. A garota que intitula a novela das 18:00 é Duda Santos, que, recém-saída de Renascer, segue os mesmos passos de Patrícia França, a Maria Santa anterior — ambas deixaram Santinha e emendaram um protagonismo às 18:00; curiosamente, antagonizadas pelo mesmo Fábio Assunção.
Vez ou outra, passo pela Garota. Ambientada em 1958, a novela de Alessandra Poggi propõe ao público um passeio pela época por meio de uma reconstituição adaptada e, sobretudo, porosa aos assuntos contemporâneos. Tema que nos atravessa (mas que só entrou no debate midiático nas últimas décadas), o racismo está no centro da trama, ainda que noutra palavra — “preconceito”, que, embora não dê conta da complexidade do racismo brasileiro, talvez supra o fato de que o próprio termo, embora existente, era inusual. As questões raciais se somam a outra ainda mais estruturante na novela de Poggi — o gênero.
Nesse sentido, caberia ao título o plural: Garotas do momento. Isso porque a atual trama das seis retoma a perspectiva feminina como basilar ao gênero “telenovela”, deflagrando todos os conflitos a partir de mulheres. A plot principal é a de Beatriz (Santos), que sai em busca da mãe desaparecida sem saber que um acidente (e uma amnésia) colocara Clarice (Carol Castro) numa armadilha: enredada entre artimanhas de Juliano (Fábio Assunção) e Maristela (Lilia Cabral), ela é sequestrada de sua história e sentenciada a reproduzir o protótipo patriarcal da típica dona de casa da década de 1950. Mais do que isso: nessa imitação da vida, cria, como filha, uma menina branca, enquanto ignora até mesmo a existência da filha biológica, negra.
Mas Clarice não é a única; outras, como Anita (Maria Flor), sobrevivem às artimanhas menos mirabolantes, cotidianas até, como a opressão de um casamento abusivo com Nelson (Felipe Abib, escalação que carrega um resquício de imaginário do personagem anterior, no “melodrama” Pedaço de mim). Anita encontra na televisão — mais especificamente no programa de Alfredo Honório — uma válvula de escape ao machismo que lhe é cotidiano. Encantada com o apresentador — vivido com garbosidade matreira por Eduardo Sterblitch —, Anita irá compor justamente com a esposa do apresentador uma situação especular, já que Teresa é outra dona de casa sentenciada, menos pelo marido do que por si própria.
Maníaca por limpeza e arrumação, a personagem de Maria Eduarda Carvalho é uma espécie de Bree Van de Camp, de Desperate housewives, sem os toques de psicopatia. Na verdade, o transtorno de Teresa é uma auto-penitência que mascara a culpa sentida por um incêndio que deixara cicatrizes na filha. Na camada mais denotativa da narração, Anita e Teresa irão compor (ao que tudo indica) vértices de um triângulo amoroso, mas interessa mais o subtexto que as alinhava, contido em momentos recentes: se Teresa, ao participar do programa do marido, não contem o TOC e implica com a disposição dos elementos cênicos e das pessoas na plateia, Anita, que fantasiava estar no programa, é proibida pelo marido de trabalhar, seja diante das câmeras, seja fora de casa. Em cena recente, o filho descobre um caso extraconjugal de Nelson e usa isso para negociar que Anita volte a ter uma de suas únicas satisfações — ver a vida na televisão, o que por si só é uma tragédia, como já nos insinuava Douglas Sirk.
Se não há ilusão possível, nem à Anita (diante da TV), nem à Teresa (dentro da TV), Lígia (Palomma Duarte) e Vera (Tatiana Tibúrcio) compõem outra dicotomia, mais palpável. Lígia sofre com a rejeição dos filhos e do ex-marido desde que descobriu que, para seguir o sonho de ser cantora, precisaria se desvencilhar do modelo de família (e de mulher) que lhe era imposto. Na impossibilidade de deixar só o modelo, decidiu deixar a própria família. A questão racial volta à baila: ainda que maldita, Lígia encontra uma brecha para si, mas, para isso, deixa os filhos aos cuidados de Vera, mulher preta, empregada da casa. A despeito de suas ações, a cantora parece ser a única a compreender — ao menos, no discurso — que Vera é uma mulher com vida própria, para além desta acerca dos filhos que o trabalho e a cordialidade lhe impuseram. A trama é republicana pelo viés de Lígia, que abre para si uma saída, mas segue colonial para Vera. Essa disparidade aparece nas cenas entre Tatiana Tibúrcio e Palomma Duarte, sempre envoltas por uma amizade terna que não subtrai pudores e ressentimentos implícitos nas profundezas. Atriz talentosa que a Globo não deveria ter deixado tanto tempo distante (uma dessas escorregadas da emissora), Duarte faz de Lígia uma das garotas mais complexas da trama — ciente dos traumas sofridos e causados, mas consciente de que era preciso se impor para que seu momento configurasse outra vida.
Novela de época aberta ao tempo de hoje (ou seria uma novela de hoje disfarçada de novela época?), Garota do momento é a antítese da Mania que não é nacional. Não tenta reinventar a roda; pelo contrário, retoma um modelo melodramático feito pelo e para o feminino, no olhar e no tempo. Entende que os tempos são outros, mas não perde de vista que as histórias das donas de casa não são História; livres ou sob concessões do patriarcado, as mulheres continuam agenciando as pulsações das vidas dos lares. Soa como tutti-frutti, mas, nas entrelinhas, o sabor se mistura. Fica agridoce.