Folhas de outono

por Álvaro André Zeini Cruz

Para mim, se existe uma categoria de “cenas irresistíveis”, são as cenas de karaokê. Em À L’abordage, de Guillaume Brac, Aline cantada em duo me pôs às lágrimas. O melhor de Aftersun está num karaokê. Um Grande garoto tem, no clímax do show de talentos, um karaokê. Encontros e desencontos; karaokê. Mal dos trópicos; karaokê. Nunca, raramente, às vezes, sempre; karaokê.

Folhas de outono…

Na Finlândia — país mais feliz do mundo, segundo pesquisa alardeada pela Globo News —, Hannes (Janne Hyytiäinen) ordena, com gravidade, ao amigo Holappa (Jussi Vatanen) — “ouça e aprecie”. Ele sobe ao palco para cantar a “romântica e nacional” Outono sob a sorveira. A letra avisa: “quem não tem asas fica preso a este solo cinza e frio”. Para a contrariedade de Hannes (que se considera um tenor), Holappa observa que o amigo é um soprano. A voz de uma mulher no extracampo ativa a panorâmica que puxa a câmera (e Hannes) à mesa ao lado; “sua voz está bem preservada para um homem dessa idade”, ela elogia, sem deixar de observar que a vida é essa implacável chegada do outono (como nos lembra o título de Mikio Naruse). Nas bordas, Holappa troca olhares com Ansa (Alma Pöysti), que acompanha a outra. Quando a Serenata de Schubert toma o salão, ele se retira até um recuo. Fuma de esguelha, enquanto Ansa repete as idas ao canudo no copo aparentemente vazio. Entre esses dois olhares titubeantes, o intérprete, no palco, impõe a serenata (gênero romântico em que a música é oferecida em honra do ser amado) num contra-plongée que o compõe em olhos piedosos, como se ele se compadecesse diante da solidão que se abate entre casas, mercados, fábricas, e karaokes.

É nessa terra de cinzas, iluminada por uma luz insistentemente gélida, que Ansa e Holappa vivem encontros e desencontros a la Jesse e Celine, só que tardios, talvez porque este não seja um filme de períodos do dia, mas de estações do ano; especificamente aquela que inicia os ressecamentos, em que a consciência do emurchecer se impõe. O desencontro primordial se desdobra de um encontro diante dos pôsteres de cinema (que os abraça e aquece), quando o papel com o telefone anotado se perde entre a calçada escura e os sapatos pretos, bem lustrados. Solitários, eles se reconhecem e se interessam um pelo outro, mas essas vidas não estão sob os destinos cítricos, mas arejados, de Linklater, e sim sob a doce clausura metalizada de Aki Kaurismäki, que empresta a arquitetura de caixas cinzas de Jacques Tati, e as colore em matizes básicos e saturados.

Afinal, qual o sentido desse caixa-encaixa de cores em Folhas de outono? Nesse mundo em que tratores e operários replicam vidas maquinais — mas não alheias de sentirem, ou de quererem sentir —, Kaurismäki concebe essa arquitetura de caixas coloridas, que se estendem dos rádios (cubos vocalizadores da guerra, que destrói operários e caixas) às casas. Parece lembrar que, embora o mundo, por vezes, se queira imagens de segurança (dessas noturnas, em PB), há em nós, humanos, os cones, essas estruturas perceptoras da cor, dado sensorial que Kaurismäki empresta de ninguém menos do que Douglas Sirk (assim como rouba a mulher na janela de Tudo o que o céu permite). A cor do melodrama sirkiano (ou minnelliano) — o mais visual dos gêneros, com diz Laura Mulvey — invade este filme em que resta ainda visão cristã genérica do paraíso em vida, mas em que há uma aceitação de que aquilo que céu permite pode não ser tanto; assim como há a crença de que as dádivas, mesmo que pequenas, cabem até mesmo às pobres criaturas que por aqui circulam (e que pragmaticamente se agarram umas às outras para efetivarem, da melhor forma possível, essas pequenas vidas).

Kaurismäki encontra humanidade nos problemas a serem resolvidos (o alcoolismo) e nos pequenos delitos a serem sustentados contra as linhas de produção desses tempos modernos (o furto de um sanduíche vencido, acompanhado de consciência e camaradagem de classe). A humanidade está também no encontro de cinema — um filme de zumbis (criaturas livres, que contradizem a canção das garotas, mais tarde, “até os cemitérios têm cercas”) —, nos cigarros nos intervalos de turnos, nas raras conversas francas (como dirá Hannes à Ansa). Está, sobretudo, na retidão das bocas, que, ao se reencontrarem, ensaiam e suspendem sorrisos. Quando uma delas cede, o sorriso se abre num espasmo, que repuxa o olho esquerdo — uma piscadela. Movimento humano de Ansa, brisa solar nesse outono de operários caricaturais, que encaram um horizonte no descompasso das “asas pequenas”, levando pela coleira um cachorro batizado de Chaplin.