por Álvaro André Zeini Cruz

Com o advento do cinema sonoro, […] um fenômeno que se anunciava, ainda que timidamente, durante o período silencioso, intensificava-se muito rapidamente: os corpos perdem progressivamente sua mobilidade em nome da proeminência das palavras. […]
O cinema sonoro “cala”, assim, o dinamismo corporal na tela, a fim de enfatizar o discurso e o sentido das palavras, reduzindo ou eliminando toda a incrível potência – plástica e mesmo semântica – contida na cinética dos corpos.
Cristian Borges em Do pré-narrativo ao pós-cinema
Margot Robbie vai ao cinema. Duas vezes. Em Era Uma Vez em Hollywood, como Sharon Tate, ela estende os pés sujos sobre a poltrona adiante para ver-se longamente na tela, numa sequência que dura o bastante para que a visão se confirme não como simples ação, mas como uma contemplação encantada diante da magia dos fachos de luz que a atravessam para projetá-la, paradoxalmente, duplicada e transformada. Em Babilônia, de Damien Chazelle, Robbie é Nellie LaRoy, atriz do cinema mudo que está na sala não para ver-se, mas para espasmar em êxtase diante de si. Assim, se Tarantino dilatava (e dividia) sua sequência para fazer dela uma intrusão poética na narrativa, Chazelle entrecorta e sutura esta rente ao arrebatamento espasmódico da personagem, pois seu filme não é sobre ver os corpos, mas sobre enxergar (e chafurdar) sobre as (a)trações corpóreas e suas soluções – o gozo, como o de LaRoy diante de si, inclusive.
Se já no início a festa babilônica situa um tempo das atrações, também apresenta, sem cerimônia, um espaço “feudal” cujo sistema circulatório distribui suor, saliva, sêmen, merda (de elefante) e urina (de gente). Esta ilha arquitetônica – um engodo, pois é civilizatória só na aparência – pontua uma Hollywoodland que ainda é mais land do que Hollywood. Pertence a Jack Conrad (Brad Pitt), astro que se arrasta pelos bastidores, mas ilude diante das câmeras de um cinema ainda sem som. Quando LaRoy invade e ocupa essa mansão como um glóbulo convulsionante, é logo reconhecida e cooptada como presença propícia para preencher os cenários rasos e rudimentares em meio ao deserto. Contudo, tanto o corpo apático (Conrad) quanto o corpo indômito (LaRoy) parecem, de alguma forma, pressentir uma das mortes do cinema, que renascerá sob outra compreensão, sem as “falas” desses corpos em falência.
Enquanto Tarantino ficcionaliza um happy end sobre uma história cinematográfica real, Chazelle eclipsa Cantando na Chuva ao mito da Torre de Babel, que não mais se estende ao céu, mas horizontalmente, em galpões que substituem os tapumes mequetrefes sobre o solo desértico, numa areia de homens que fazem nascer e morrer através de miragens. Aqui não há Don Lockwood/Genne Kelly, porque só existem Linas Lamont, rodeadas por gângsteres que arremessam moedas ao alto; e que agora se desfazem não sob a água da chuva, mas sob o pingo do suor (na cena estrelada por Tobey Maguire). E se não há chuva para lavar e renascer o cinema, sobram os fluidos a este filme que afoga em transpiração, e que é feito em golfadas de sangue, vômito e… veneno.
Isso porque Pitt vai ao deserto. Duas vezes. Em Era Uma Vez em Hollywood, como o dublê que, com passada de caubói, bisbilhota o sítio de Charles Manson no clímax deslocado. Em Babilônia, como o ator deprimido que, buscando ver algo real, revela-se um espectador fascinado pela luta-espetáculo entre LaRoy e a cobra (outro clímax alocado de maneira inusual). Esticada sob a luz dos faróis, a serpente lembra sua natureza não cenográfica e injeta o veneno pelo pescoço até o corpo estrebuchar (porque é isso que os corpos fazem em Babilônia). Então, uma heroína inesperada – que está prestes a ser expelida deste sistema – suga e cospe a peçonha, num ritual de ressurreição que transmuta sangue, saliva e veneno numa só solução (desprezada e empanada pelos grãos da areia), tal qual a sobra das imagens que se desfazem em emulsões fotográficas, próximas aos créditos finais.
Chazelle pode comungar com Tarantino da nostalgia, mas O “Era Uma Vez” no título tarantinesco implica a existência de uma história instaurada num reino distante já completamente erguido, com o bang-bang nas bordas atmosféricas ou metafóricas. Babilônia é um western que se realiza como retrotopia do musical de Donen e Kelly, numa Babel de línguas e discursos que nascem do som para matar imagens. Tarantino filma um império; Chazelle, uma colonização. Periga, no entanto, ser mais comparado com Shyamalan: lembrado por seu filme mais quadrado (Whiplash), esquecido por trabalhos como este, imperfeito (entre gorfos silenciosos e sonoros arrotos), mas arriscado.