por Álvaro André Zeini Cruz

Numa cena de First Cow, Cookie Figowitz (John Magaro) tira uma panela de ferro do fogo e cruza a pequena cabana para deixá-la sobre um aparador rente ao chão de terra. Esse utensílio doméstico, objeto da ação, é o centro do plano e carrega o olhar da câmera de um lugar a outro; Figowitz, o sujeito, é cortado pela margem do quadro. Apoiada a panela, ele sai, dando a deixa para que a câmera realize uma correção vertical. Essa correção (um tilt) revela King-Lu (Orion Lee) entrecortado pela parede de tábuas mal acopladas. Semi-velado, ele se lava com as mãos usando a água de um barril. Veste a camisa e sai para a direita do quadro, atraindo a câmera, que o encontra sem empecilhos quando ele cruza a porta e a janela, dois elementos arquitetônicos contundentes nos westerns. Mas se no western clássico, portas e janelas revelam pradarias, desertos e tudo o que pode vir do mundo de fora, neste, dirigido por Kelly Reichardt, é a casa, o mundo de dentro, que vai revelar algo característico de um ambiente doméstico: quando King-Lu volta do trato com as galinhas, encontra sobre o parapeito da janela o bolinho feito por Figowitz. A massa fora feita a partir do leite que, juntos, roubaram de um figurão local, dono da única vaca da região. Diante do quitute – um farelo de conforto naquele ambiente inóspito – King-Lu sorri e olha para Figowitz no extracampo, dentro da cabana, esse lar inesperado que os dois construíram.
O tal figurão é um comerciante local, interpretado por Tobby Jones. Dono de uma casa refinada, que contrasta com a pobreza e rusticidade ao redor, ele contrata – sem saber – a dupla de ladrões de leite. Figowitz e King-Lu travam diálogos (e trocam de posições) sobre isso: o poder tornaria aquele homem perigoso ou tolo? Fato é que, antes dos caminhos se entrecruzarem de novo, o Comerciante dorme um sono profundo, enquanto o empregado da casa – um homem indígena vestido como europeu – apaga, sem pressa, as velas dos cômodos. Novamente, o movimento de câmera é acionado, desta vez de maneira mais complexa: embora o travelling lateral contemple a ação denotativa de acompanhar as andanças desse empregado (que, inclusive, desliza pela profundidade de campo), a câmera estabelece o corpo deitado do Comerciante como eixo limitante. O movimento serve para acompanhar o empregado ao fundo, mas é regrado pelo corpo do Comerciante, o homem da casa, cujo poder (e crueldade) são explícitos num diálogo anterior. A cena reconhece a centralidade desse homem, mas não o livra da ambiguidade: se a câmera não pode se desvencilhar dele, pode, ao menos, pendular – ritmada pelo ronco – da cabeça ameaçadora aos pés ridiculamente pequenos deste detentor do poder (e a escalação de Tobby Jones é fundamental na construção dessas ambiguidades).
Duas cenas curtas, dois movimentos de câmera. Na primeira, o movimento orgânico coroa a rotina doméstica estruturada pela cumplicidade entre dois homens. O afeto entre eles se atém à amizade, mas ultrapassa a lealdade, valor preponderante entre homens aliados nos westerns. Embora também sirva para seguir a ação de um personagem, o movimento da segunda cena é maquinal, preso ao peso do poder que ronca solenemente enquanto serve como núcleo gravitacional ao empregado da casa. Num, a câmera persegue com uma naturalidade calculada o objeto que contém a ação e a relação de Figowitz e King-Lu (e é irônico que a grande aventura desse western envolva o ato de cozinhar); noutro, só resta o cálculo do plano quase exibicionista, afetado pela ambição do homem sem nome (chamado apenas de “Comerciante-chefe”) que o dispara.
O confronto proposto por Kelly Reichardt não é o do duelo clássico, até porque mal há horizonte para que ele aconteça. O embate aqui é entre o homem que veio da Europa (e continua com a cabeça lá) para explorar tudo o que puder ser explorado, e esses homens que sobrevivem, e que entendem que a sobrevivência passa por povoar. Para isso, é preciso uma casa, uma cabana que seja, mas que ultrapasse a existência arquitetónica, que tenha gosto de casa, como diz um dos personagens. Não é à toa que o clímax impõe justamente uma fuga, o não retorno ao ambiente doméstico, aos quitutes acolhedores que compartilhavam entre planos e conversas. Quando param para descansar, King-Lu se oferece para fazer a vigília, mas logo adormece ao lado de Figowitz. No close de semblantes em sonos tranquilos, Reichardt dispensa a necessidade de um alicerce, de tábuas, teto, portas e janelas. Há naquela amizade um lar instaurado.