Faz-se uma eZtrela

por Álvaro André Zeini Cruz

Há coisa de um ano, eu não tinha ideia de quem era Jão. Meu pai sabia e informou a este filho matusalém que o cantor — criado em Américo Brasiliense, ali do lado de Araraquara — era um fenômeno. Então, por motivo de força maior, Mariana, minha esposa, foi ao show de abertura da Superturnê, no Allianz, acompanhando a irmã adolescente. Não só voltou impressionada com o tamanho da produção, como ainda me deu uma overdose de Jão. Lá pelo meio da turnê, encarou outro show, desta vez em Ribeirão Preto e por livre e espontânea vontade. Nas duas ocasiões, escapuli com a desculpa factual da minha conta bancária. Agora, com a Superturnê chegando às salas de cinema, não tive escapatória.

As 2 horas e 40 minutos de duração do doc-show (ou seria um show-doc?) fazem jus ao título — Jão – Superturnê —, assim como o porte da produção: dos telões-arranha-céus ao palco-passarela, tudo é pirotecnia grandiosa para que a música repercuta e retroalimente um espetáculo visual. Essa visualidade, no entanto, é mais pensada para o evento ao vivo do que para o filme, que se contenta em captar tudo da maneira mais denotativa possível. Nesse sentido, é um filme de decupagem burocrática — longe de ser, em todos os sentidos, Scorsese filmando os Rolling Stones —, para que se veja e ouça o show de pontos de vista privilegiados, sem qualquer tentativa mais sinestésica de imersão (sendo justo, as imagens aproveitam bem o contraste produzido pela chuva e pelas luzes das pulseiras coloridas, distribuídas ao público). É como se o próprio filme desse um recado: para viver o show, é preciso estar lá, na turnê de carne e osso. Não quer dizer que a Superturnê em tela grande tenha sido uma experiência vã; pelo contrário, me ajudou a especular um bocado, a conjecturar hipóteses acerca da pergunta: por que Jão é um fenômeno?

A resposta resumida seria: porque Jão se faz fenômeno. Vale recuperar a etimologia da palavra — “o que é visto, o que surge aos olhos”. Não se trata, porém, de um surgimento espontâneo; da presença de palco à carreira relativamente meteórica, Jão não me parece um desses artistas descobertos acidentalmente numa feliz coincidência entre talento e sorte, muito menos aqueles levados pela carreira sem ter o controle das situações. Pelo contrário: sua Superturnê me levar a crer num artista pensado, composto e executado na fita métrica da alfaiataria, sob o cálculo dos mínimos detalhes. Não é uma estrela que nasce, e sim uma que se faz. E isso começa pelo visível, pela imagem.

Se o biotipo esguio e longilíneo de galã da Hollywood clássica é inato, todo o resto é uma montagem: talvez venha dessa mesma Hollywood a inspiração para o bigodinho de Clark Gable, que contrasta ao cabelo oxigenado a la David Bowie. Os olhares apertados performam entre James Dean e Freddie Mercury; as jogadas de cabeça e as poses em serpentinata são algo entre Ney Matogrosso e Ricky Martin, passando, nesse ínterim, por alguma coisa de Cazuza. Em cada um dos antebraços, há uma tatuagem: de um lado, o crânio do que parece ser um animal pré-histórico; no outro, um ET com traço e tamanho de emoticon. Entre os contornos realistas da criatura extinta e o cartoon da criatura aguardada (“me leva, somos iguais”, diz a letra de Sinais), está esse Homo sapiens que, entendendo um mundo de patchworks assépticos, elabora-se como um Frankenstein de costuras pensadas — tantas que as linhas dessas suturas se camuflam sob o resultado.

Falando em corte e costura, os figurinos têm papel central na construção do storytelling visual da Superturnê. Dos quatro vestidos por Jão, três são variações de cores, texturas e tecidos entre coletes, calças e botas, que, no decorrer das trocas, vão acentuando uma mistura dos códigos de gênero. Assim, por três vezes, o cantor aparece como um cowboy sem mangas, cujos coletes vão da cintilação ao pink coroado por uma gargantilha de brilhantes. Se não completa uma performatividade andrógina, evoca uma névoa de androginia em prol da subversão dos códigos associados a um clichê de masculinidade — os cowboys (e muito da referência dessa desconstrução parece vir de Harry Styles). Em um Brasil onde, há mais de uma década, impera a linha de produção de um sertanejo duvidoso, personificado por brutamontes, Jão se conceitua como um cowboy que vai se despojando dos códigos mais sóbrios até conquistar o devido chapéu ao final do show. Não um chapéu qualquer; um vermelho, alcançado no único momento em que a composição com coletes dá lugar a uma camisa de caimento solto. Não é John Wayne, nem está num filme de John Ford: Jão compõe-se como algo entre Zorro e Don Juan DeMarco.

Aliás, nesse contexto hegemônico de um jovem sertanejo reacionário, talvez esteja o único ponto não pensado, o golpe de sorte na carreira de Jão: ele se instala numa espécie de vácuo no pop brasileiro mais puro, visto que contemporâneas como Anita, Ludmilla, Iza e Ivete transitam entre outros estilos, como funk e o axé. Nesse cenário musical, Jão absorve o visual do country para distorcer e perturbar essa referência primeira, reconduzindo-a a esse pop posicionado à geração Z, mas que não se descola da ideia de mosaico: as letras, por exemplo, vão dos momentos mais duvidosos de Legião Urbana e Los Hermanos a um ranço da psicodelia de Ronnie Von e Vange Leonel. Olhares e ouvidos atentos podem pensar: soa como, mas não é. Não é pastiche, tampouco antropofagia; trata-se de um conjunto de composições (em amplo sentido) capitaneadas por esse protagonista, que olha, ouve, capta e sente os arredores. Compreendendo a cena artística que pretende sob o mundo em que está, Jão se desvencilha de certa conformidade/conformismo pós-moderno, ainda que saiba que a pós-modernidade é uma rota inescapável. Por isso, opta por recalculá-la num percurso próprio.

É nessa brecha que os refrões chiclete e as batidas dançantes cantam identidades fluidas, sexualidades exploratórias, amores teen-progressistas. E ainda que a música não seja o foco deste artigo (até por uma inaptidão deste autor), é inevitável observar nas letras a aventura — geográfica, amorosa, sexual, psicodélica — de um rapaz interiorano (de Américo Brasiliense, do lado de Araraquara!) por São Paulo, a metrópole que Jão encara como uma espécie de heliporto interplanetário. Não à toa, o ápice do Supershow é visual: “abduzido”, o cantor é içado ao topo do telão mais alto, transformado pelos leds num arranha-céu. É, no mínimo, simbólico que Jão suba, colocando-se como quem vê de cima, conferindo, ao vivo, sua maior composição e repassando os passos minuciosos de uma carreira construída para lotar estádios.

Entre tantas junções, o filme abre fissuras a recortes narrativos dos bastidores, que insinuam personagens e conflitos (o perfeccionismo do cantor, a dimensão do palco, a chuva), ainda que não se tenha tempo de ir a tanto. Chega-se, porém, a algumas sínteses essenciais, que compõem o quadro maior: a história de amor com o produtor Pedro Tófani parece desdobrar um imaginário em torno das músicas, como se personagens ganhassem ali materialidade (provocando alvoroço e gritaria adolescente na plateia). Para além dessa trama clássica, há aquela que carrega uma crença subtextual e subliminar, mas que injeta um proto-tema, ensaia uma ideia governante que, pressuponho, é de forte apelo ao público-alvo: a narrativa dos amigos de faculdade que escapuliram da pasmaceira publicitária para criar essa peça ambulante, vendida não como uma fragmentação trivial coesa (mais do mesmo), mas por um embaralhamento de códigos que resulta em algo irreconhecível à primeira vista, que impressiona singularidade. 

Millenium tardio, Jão dialoga com parte da geração posterior, os Zs, porque supera o desafio de despontar entre um caldo pós-moderno anestesiante, fragmentações derretidas que sequer compõem discursos inteiros. Aproveita-se desse vácuo no pop para se colocar a um nicho mais aberto — ou menos tacanho — de uma juventude sedada pelas redes sociais, conformada ao tempo e andamento do mundo, desacostumada até mesmo com as rupturas mais negociadas. Causa identificação porque põe em prática aquilo que talvez seja o desafio dessa geração: entender que, uma vez que as bricolagens são inevitáveis, elas precisam, ao menos, parecer genuínas se quiserem completar alguma comunicação, causar alguma comoção. Em um mundo de réplicas, retornos e recados atravancados, Jão comunica e soa original, a ponto de, numa carreira relativamente curta, lotar o Allianz Park. Não é uma estrela que nasce; é uma estrela consciente de que, cada vez mais, cada um que calcule e exploda seu próprio big-bang.