Björk, ​Black Lake ​e a arte de prosseguir 

Por Liene Saddi

Os incontáveis desencontros e corações partidos no caminho são matéria recorrente na criação humana. Entre histórias, diários, poemas, diálogos, desenhos, pinceladas, letras de música, gestos expansivos, paletas melancólicas, a cada um cabe um processo muito particular de localização, passagem e liberação de focos de dor. Um processo que acaba envolvendo muitas vezes o exercício de tatear no escuro, nas profundezas arquivadas da psiquê, elementos que permitam um reencontro sincero e honesto com a dor antes de cicatrizá-­la.

Para Björk, não foi diferente. A artista, que ao longo de décadas já nos presenteou com sons, imagens, objetos, instrumentos e até softwares que refletem sobre grandes questões universais entre homem, tempo,  espaço, ancestralidade, natureza, ciência e tecnologia, optou por se voltar no seu álbum mais recente, “​Vulnicura” (2015), para uma temática mais particular e autobiográfica, um desabafo em carne exposta que toma como ponto de partida seu divórcio com o artista visual Matthew Barney.

O lançamento do álbum coincidiu com a realização de uma mostra retrospectiva em homenagem à artista  no The Museum of Modern Art (MoMA­NY) e com a encomenda de uma obra inédita para a exposição, para a qual Björk propôs a instalação audiovisual “​Black Lake​ ”, a partir de música homônima, com direção de Andrew Thomas Huang. No trabalho, ambientado em uma sala fechada, tecidos do teto à parede emulam o interior de uma caverna, e o público é convidado a caminhar pelo espaço durante a exibição de um videoclipe em duas grandes telas (com imagens complementares entre si) e a perceber a distribuição do arranjo da música, espalhado por dezenas de caixas de som.

Black Lake” possui uma série de características marcantes, entre elas uma noção de tempo modulado que se apresenta inicialmente em longos planos ­ os quatro primeiros minutos do vídeo não chegam a dez cortes ­ para, em um segundo momento, caminhar de maneira mais orgânica entre as batidas eletrônicas do arranjo musical e os momentos de stand­by marcados pela instrumentação em cordas. Com isto, mergulhamos junto com Björk da sensação de um tempo externo, cronológico, à percepção de um tempo interno, subjetivo, em um espaço límbico entre obra e espectador: o tempo das dores arquivadas em camadas.

Há ainda uma questão de projeção que parece evidenciada ao tomarmos contato com uma obra como esta, especialmente se considerarmos a produção anterior de Huang, com o curta­metragem “​Solipsist” (2012) e o videoclipe “​Mutual Core” (2013), este último também em parceria com Björk. Nestes trabalhos anteriores,  o conceito do solipsismo (que associa a realidade à experiência direta do indivíduo, onde o mundo só existe a partir das sensações do ‘eu’ e suas projeções sobre o outro), tão caro ao diretor, se resolve visualmente em tons quentes e saturados, em opções de direção de arte que nos remetem ao caráter vivo e vibrante da natureza, em emaranhamentos de cordas, cadarços, fios, animais e corpos humanos integrados em um grande sistema.

Já em “​Black Lake”, o sentido de impermanência terrestre ­ temática recorrente na obra de Björk desde o  videoclipe “​Jöga” (1997), dirigido por Michel Gondry ­ continua, seja pelas rochas quebradas, seja pela lava expelida. Mas estas camadas de pedras e terra, diferente de todas as suas abordagens anteriores sobre o tema, pela primeira vez não conversam organicamente com um corpo ‘neutro’ em meio à paisagem. Com  uma Björk esmaecida em tons frios e com a saturação perdida, a Huang resta procurar outras potências no gesto, no corpo e na dor da artista. Missão que ambos executam com maestria.

Sem os emaranhamentos visuais e com o foco sobre um único objeto (ao que Deleuze chamaria de imagem rarefeita), a própria cantora, Huang retrata uma Björk que se desloca emoldurada pelas cavernas de sua terra natal, a Islândia, tendo como foco o movimento de seu corpo, que percorre a natureza mais em  função de analogia do que de integração, e que é acessado do inconsciente ao consciente através de gestos corporais repetitivos: expelir, chacoalhar, bater, se contorcer.

Quando Björk sai da caverna pela primeira vez, um primeiro olhar poderia julgar se tratar de uma libertação ou superação e associaria a esta saída algum tipo de alívio. Mas, se olharmos atentamente, perceberemos que é noite ainda, e um foco artificial de luz marca forte sombras entre ela e o chão, nos contando que essa saída para o externo é apenas uma construção encenada.

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Seu caminhar continua a esmo, mas uma batida de sua mão na região do coração parece finalmente servir como meio de acesso a seu real foco de dor. A caminhada cessa, e ajoelhada, Björk repete o gesto dezenas de vezes – estando a maior parte delas concentradas em um único plano, com as últimas fragmentadas pela edição que potencializa esta liberação – até que a artista se entrega ao chão, passando então a se integrar de fato com a natureza, com seu corpo suspenso e revestido de elementos mais leves.

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Concluindo um arco que opera mais pela chave da experiência do que pela da narrativa, finalmente amanhece. Björk volta a sorrir e se despede, nos dando as costas e seguindo sua própria jornada em meio à paisagem. A encenação está encerrada, assim como a imersão, e o espectador sai da instalação desnorteado. Alguns trocam sorrisos, alguns deixam uma lágrima cair. Alguns saem emudecidos. Tem quem precise sentar ­ o que é até justificável para nós que aprendemos a assistir videoclipes distraidamente no sofá da sala, no computador e no celular.

E claro, há também os que saem às pressas, com o catálogo do museu em mãos, para completar a rota turística prevista para o dia.  Mas, em certa medida, estamos todos como Björk, em uma espécie de alívio pós­catarse que libera conteúdos, mas não os cicatriza completamente. Ainda está levemente nublado, mas já é possível, de alguma forma, caminhar ao ar livre. Já é possível, de alguma forma, prosseguir.

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A versão original de “Black Lake” foi posteriormente adaptada para o YouTube, após o encerramento da exposição no MoMA, e se encontra disponível em https://www.youtube.com/watch?v=YGn1pJIpZw8​  .