Espumas e espelhos

por Álvaro André Zeini Cruz

Na abertura de Mad Men, realizada em animação, um escritório se desfaz em torno da silhueta de Don Draper (Jon Hamm), que é lançado entre os arranha-céus e contra aquilo que os cubículos de engravatados produzem: imagens-espuma que modelam modos de vida — imagens publicitárias. A vinheta sintetiza a trajetória de Draper, homem que se livra da própria identidade para se tornar esse corpo opaco, incógnito, que, como uma esponja, vai absorvendo os vapores dessas imagens, tornando-se um pouco de cada, até formar-se como um sujeito-mosaico, cujo drama está na dificuldade de solidificar essa névoa ilusória ao longo de sete temporadas.

A queda vertiginosa de Mad Men finda noutra série, de outro canal: mais especificamente, nas imagens-concreto que abrem Succession. Constituem-se como consequência, como se, ao longo dos anos, a espuma das miragens se cristalizasse num exoesqueleto, uma carapaça que contém e protege essa natureza imagética volátil, situada por Mad Men a partir da década de 1960. Na abertura de Succession, os arranha-céus nova yorkinos se erguem não mais pela animação, mas através da fotografia lisa de um live action com textura areada e esmaltada para que não haja grão ou ruído a profanar a verticalidade das fachadas espelhadas.

Contudo, essa arquitetura do poder contrasta um conjunto de imagens arqueológicas, escavadas e granuladas pela natureza do super 8. São imagens que se querem provenientes dos arquivos familiares, desta que não é uma família qualquer, mas dona de um conglomerado midiático. A abertura de Succession pulsa a partir dessa oposição: Leds, vidros e concreto, postos em imagens planas e límpidas, se alternam com um conjunto de seres humanos do passado; crianças bem vestidas que posam para a câmera no cenário de uma mansão. Quando não estão diante da lente, elas têm a objetiva colada em over the shoulder, como se, para essas infâncias, a vida familiar fosse uma eterna vista dos bastidores. Dali, elas vislumbram o pai, não como uma silhueta (como Draper), mas como fundo ou fragmentos gestuais — um calção molhado, as mãos que encerram com veemência um assunto.

Curiosamente, essas imagens em super 8 de Succession retomam os anos 1970, tempo em que Mad Men se encerra (com Draper vendendo Coca-Cola). Essa conexão, dada pelas aberturas, providencia um lampejo do mundo de lá para cá: se Draper e cia. se digladiam com as imagens para domá-las, tomá-las e reprogramá-las (para si e para o mundo), para a família capitaneada por Logan Roy (Brian Cox) essa já não é mais uma questão, pois o mundo já é pura imagem e suporte; como coloca Vilém Flusser, um mundo codificado em que o reino das imagens e o reino dos conceitos se retroalimentam, ignorando o reino da experiência imediata. É dessa ignorância que os personagens de Succession se nutrem. Assim, se em Mad Men a imagem é síntese emotiva e criativa — e, para isso, passa por processos de brainstorm, storyboard etc. —, em Succession nada disso existe, porque as imagens existem de maneira autônoma. A disputa não é mais por criá-las, mas por manter-se com os lucros e dividendos.

Essa mudança de circunstância cava a fenda que separa os personagens das duas séries: a complexidade dos Mad Men está nessa operação camaleônica que exige a manutenção de certas máscaras enquanto se está ciente de que há outra coisa por baixo; e esse exercício se revela insustentável para além do tempo publicitário (que dirá para vidas inteiras). Em Succession, a complexidade dessas figuras familiares está em ser aquilo que aparentam e nada mais; pura superfície. Assim, ainda que os diálogos sejam afiados, a questão aqui não é mergulhar em busca do subtexto (como em Mad Men), mas aceitar que o subtexto é propositalmente canhestro para que nos constranjamos com esses personagens crentes de que são manipuladores, quando, na verdade, estão todos nas mãos de um único titereiro (e que não esconde que o é). 

Desta forma, é previsível que Siobhan (Sarah Snook) só sinta tesão pelo marido Tom (Matthew Macfadyen)quando explicita que a sucessora no poder é ela, que o sadismo de Roman (Kieran Culkin) seja acompanhado de masoquismo, que na impossibilidade de usar a cocaína como escape, Kendall (Jeremy Strong) encontre outra ação-problema. Nesse sentido, Greg (Nicholas Braun), o primo “pobre”, é quem tem alguma nuance, pois o mundo real talvez tenha lhe dado alguma matéria (a cena em que ele chantageia Tom sem deixar de se vitimizar é uma revelação). Greg sabe quanto custa o litro de leite! Nesse mundo em que o poder se resume ao pé direito das salas e escritórios, às humilhações físicas (o funcionário-aparador) e às tramoias que citam cifras (mas nunca mostram malas de dinheiro), não há mais preenchimento ou matéria. Restaram apenas ações (da Bolsa) e máscaras.

É Kendall, aliás, quem explicita isso ao tentar repetir a queda de Don Draper: em “Safe Room” (S02 E04) ele sobe ao topo do prédio e olha para o mar de prédios (produtores e suportes imagéticos). Mas não consegue pular, pois há um vidro que, além de contê-lo, faz aquilo que cabe às superfícies lisas e refletoras: espelham. Essa máscara de homem — que não é arquétipo, mas puro estereótipo —, então, faz o que resta: encosta a cabeça na réplica, nesta imagem contida, incapaz até de se chocar com as outras. Ao menos, em Mad Men, para cada imagem havia um corpo palpável.

Ps.: ironicamente, o senador Fabiano Contarato fez, ao atual presidente do Banco Central, a mesma pergunta de Logam Roy: “o sr. sabe quanto custa o litro de leite?”