Éramos Seis; três textos

por Álvaro André Zeini Cruz

Textos publicados originalmente em página pessoal no Facebook

05/12/2019

Bonita a cena de sonho que antecedeu a morte de Júlio (Antonio Calloni) em “Éramos Seis”. Não poderia ser mais simbólica: ele e D. Lola (Glória Pires) bailam na tão sonhada loja, enquanto os filhos assistem da vitrine a celebração daquele pequeno sonho burguês. A câmera dança junto, até encontrar o rosto de Calloni, que sorri em close. Só em sonho, claro.

Mais bonita ainda foi a cena que antecedeu tudo isso, desses momentos singelos que arejam o drama ao mesmo tempo que são simbólicos: aflita, D. Lola é enquadrada oprimida entre as colunas austeras do corredor do hospital. De repente, uma pequena silhueta invade esse vácuo entre os pilares. O reposicionamento do olhar da personagem é a deixa para que a profundidade de campo se desfaça, revelando um louva-a-deus. Aí há o plano do bichinho, seguido do contracampo potente de uma das maiores atrizes televisivas, que sorri, talvez vendo uma nesga de esperança, talvez enganando-se, talvez não vendo nada, nem mesmo a iminência da morte.

É o tipo de cena que faz diferença numa novela. Mas suspeito que é o tipo de cena que afugenta parte do público, cada vez mais desacostumado a essas sutilezas.

07/02/2020

Nesses tempos em que um bando de lunáticos (e boots) pleiteia carteirinhas do CCC – Comando de Caça aos Comunistas (ainda que não me pareça haver tantos comunistas dando sopa) –, “Éramos Seis” tem dois personagens que o presidente da república (escrito em minúsculas mesmo) desaprovaria: Alfredo (Nicolas Prates) e Virgulino (Kiko Mascarenhas).

Alfredo é comunista desde criancinha, ou melhor, desde o livro de Maria José Dupré: o filho rebelde de D. Lola sempre foi o contraponto ao primogênito da família Lemos desde o romance. Carlos, a antítese, ocupa o lugar do pai morto, carregando junto com a mãe as responsabilidades daquela família que deu um passo maior que a perna e pagou com um estômago ao banco: é bastante simbólico que, no romance, Carlos morra de úlcera, como o pai.

As adaptações televisivas tem dado outro destino a Carlos; a da Globo seguirá com o destino traçado por Silvio de Abreu e Rubens Ewald Filho na versão anterior. A atual, de Ângela Chaves, tem se mantido num ritmo lânguido muito próprio, mas que foi calculadamente rompido no capítulo do dia 5, que prepara a morte de Carlos. Essa quebra veio pela montagem alternada: nas ruas, Virgulino e outros trabalhadores se preparam para uma manifestação contra o governo de Vargas; enquanto isso, Alfredo e Lola (Glória Pires) conversam: ela adverte o filho para que não vá à tal manifestação; ele responde que se revolta com a indiferença dos ricos para com os pobres. D. Lola, então, encarna o falecido reacionário: “meu filho, mas sempre foi assim!” (salvo engano, a Lola do livro diz essa mesma frase). Alfredo sai com a mãe nos calcanhares — “eu gostaria demais que você se empenhasse dessa forma pela sua família […] O Carlos se importa com a nossa família. E ele se sacrifica por nós”. Alfredo replica: “a senhora realmente acha que o Carlos é feliz? Pois eu acho que ele não tem coragem de lutar pelo que ele deseja”.

Corta para Carlos, num close que lhe arranca o queixo; depois, para Inês, a namorada sempre à espera de uma migalha de tempo desse patriarca substituto. A voz de Alfredo continua: “eu tenho certeza de que ele está sempre deixando um sonho para trás”. Carlos volta; agora o espaço se revela por completo: é o banco, local de trabalho que, nesta “Éramos Seis”, tem cenografia de mausoléu mal-assombrado, fotografada com pouca profundidade de campo, as bordas do quadro distorcidas pela lente e uma luz difusa brilhante, que cria contornos etéreos que parecem antever o destino de Carlos. Alfredo, na alternância, vai às ruas, concreto em sua corporeidade. A montagem acelera junto à trilha; a rotina maquinal de Carlos é ressaltada pela repetição da sineta à disposição dos clientes. Quando o expediente se encerra, ele sai à rua e dá de cara com a manifestação em polvorosa. Ali, congela encostado à vitrine de uma loja (espaço tão caro ao pai morto): não sabe como encarar aquele espaço público prestes a entrar em guerra.

Ironicamente, é a vez de Isabel (Giulia Buscaccio) reclamar do irmão à mãe — “seu filho querido faz questão de transformar esta casa numa praça de guerra” (a guerra imagética na esfera pública adentra o espaço privado). Lola o defende — “Carlos não é só honesto, ele também nunca me desobedeceu”. A fala da matriarca contrapõe os três filhos (o quarto, que só se interessa por dinheiro, já se escafedeu): Carlos, o que vive os conformes do establishment tanto na esfera pública quanto na privada vs. Alfredo e Isabel, o comunista e a moça apaixonada por um homem desquitado. Carlos, a replicação do pai opressor, oscila entre esse lugar de filho e pretenso chefe do espaço doméstico e acaba num conflito geracional com os irmãos. Quando se depara com o espaço público para além das engrenagens bem azeitadas (e impessoais) do banco, congela e, por fim, acaba alvejado pela opressão do Estado. Acaba por ser sintomático que os que passam por ele caído ao chão, não o socorram. É o filho invisível de D. Lola, cuja adaptação muda os meios, mas não o fim: invisível como o pai, que passara a vida às voltas com o banco. Morreu por seguir o fluxo da via e nem se pode dizer que atrapalhou o tráfego.

Mas há o outro comunista: Virgulino não existe no romance original e é um acréscimo interessante à galeria de personagens de Dupré. O marido de D. Genú (essa sim personagem que veio do livro) consegue encarnar o pai exemplar e o comunista sonhador. Mais do que isso: é incorruptível, como demonstrara um arco recente, que terminou com a demissão desse patriarca honesto e progressista. Se Alfredo, desde o romance, é uma figura escorregadia, amável, mas por vezes condenável, Virgulino faz a ele esse contraponto interessante de se ver em tempos em que tem gente que ainda crê em comunista que come criancinha.

Assim, na languidez dos dias da família Lemos, a trama de Ângela Chaves vai se adaptando ao tempo. É verdade que o livro de Dupré já deixava algumas pulgas atrás da orelha pela conclusão: Isabel ganhava o amor, Alfredo ganhava o mundo, Carlos ganhava a lápide e D. Lola, o asilo. Ao que tudo indica, a matriarca vai ceder à influência dos filhos “desobedientes” e vai se arriscar a cair nas más línguas ao deixar o eterno luto reservado às viúvas da época (o par romântico, Afonso, também estava na manifestação). A novidade desta adaptação é que ela mantém o tom nostálgico das outras, mas não se enterra na melancolia que vai transformando o sobrado da avenida Angélica – o sonho de uma vida –, num mero abrigo de quem só espera a morte. Ao que tudo indica, desta vez, D. Lola vai conseguir de livrar do encosto do patriarca médio, que atendia pelo nome de Júlio Abílio de Lemos. Assim, “Éramos Seis” se adapta sem deixar de conjugar o verbo no passado, mas entendendo que há que se olhar para um futuro. E entendendo que Alfredo e Isabel, talvez, tivessem alguma razão.

27/03/2020

“Éramos Seis” terminou atualizando discussões políticas, ainda que mantidas no subtexto. Continua uma história sobre as falências que vão tirando os filhos de D. Lola, um a um: Julinho troca a família pelo Capital; Carlos perde a vida para o banco; Alfredo foge por conta da ineficácia da Justiça; Isabel opta por uma felicidade desaprovada tanto socialmente, quanto pelo Estado. Esses sucessivos colapsos institucionais deflagram a ruína de uma instituição ainda mais primordial: a família. No livro de Maria José Dupré, o título “Éramos Seis” sintetiza a maternidade como a cicatriz melancólica dessa derradeira falência. Nesta quinta adaptação, quando D. Lola pensa “éramos seis”, sr. Afonso retruca: “somos muitos”. Vem, então, a foto dessa instituição mais arejada e maleável, que independe dos laços de sangue para cristalizar-se nos laços de afeto: a comunidade. Um final político e otimista, que veio bem a calhar em dias como estes.